quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Meu último suspiro

Eu passei a noite em claro.


A boca seca, os olhos cansados de chorar e aquela nuvem negra em volta.


Tudo voltava e desta vez nem uma boa dose salvaria.


Eu sentia aquela tristeza enorme e não sabia como lidar.


Além disso, a coisa era tão sem sentido a minha volta que eu não sabia o que esperar.


Minutos depois daquela ligação de Rudolph, meu mundo todo virou de cabeça para baixo.


Eu pisquei e sai daquela sensação de sono interrompido para assistir minha casa sendo revirada pela polícia.


Lógico que uma revirada com educação, já que foi “solicitado” de forma bastante educada e convincente pelos policiais italianos.


Naquele momento, não existia a fama do Vigário ou mesmo o poder de Ari, mas ainda assim eu era apenas um suspeito.


A polícia seguia 3 fatos para me deixar mofando na lista de suspeito:


- O assassinato tinha sido cometido seguindo os moldes de uma morte do meu livro.


- Deixaram uma cópia do meu livro na cena do crime ao lado do corpo.


- Ele era meu amigo e toda cidade sabia como éramos próximos.


Não podia ir ver o corpo do meu amigo e ainda tive meu passaporte apreendido.


Precisava cumprir mais burocracias, mas Rudolph deu um jeito nisso.


Eu estava praticamente em uma prisão domiciliar e completamente destruído.


Da Vinci estava inquieto e parecia sentir todo aquele ar pesado a sua volta.


Ficou assim a noite toda, em uma espécie de sentinela, vigiando ali quietinho seu aquário sem desgrudar os olhos de mim.


Aquela história de que um peixe-beta tem 30 segundos de memória tinha caído por terra.


A polícia foi embora e deixou uma viatura a minha porta.


Eu fiquei lá vagando pela madrugada e chorava como há muito tempo não acontecia.


Eu não poderia receber ninguém que não fosse um advogado ou Rudolph, que tinha uma espécie de auxílio a polícia italiana com a sua empresa de segurança privada.


Depois que voltei para a cidade, eu me tranquei e não informei a ninguém.


Ainda estava experimentando os efeitos do pós lockdown no meu mental.


Também andava próximo daquela linha limite com a minha escuridão habitual.


Sempre me fecho quando chego por lá.


A mafiosa descobriu que eu estava de volta e apareceu para demonstrar o quanto estava ofendida com minha atitude.


Eu esperava ela bufando de raiva e jogando toda sua brancura fora com aquele tom avermelhado de quando ela ficava nervosa.


Mas não dessa vez.


Apareceu com o semblante pesado que me atingiu logo de cara.


Era decepção.


Ela estava se sentindo decepcionada comigo por não contar com ela.


Ao mesmo tempo que dizia estar decepcionada com ela mesmo por não conseguir chegar mais em mim.


Suas palavras mostravam o peso do que ela sentia.


Era um misto de decepção, abandono e frustração.


Ao mesmo tempo, ela ia dizendo como estava se sentindo enganada e machucada pela minha atitude.


Ela ficou todo o tempo a uma distância de mais ou menos dois metros, como se estivesse seguindo as normas estipulada para a pandemia.


Isso tinha um simbolismo muito maior.


Mostrava que ela não me via mais como alguém do seu círculo íntimo de contato.


Ela parecia sofrendo realmente com aquilo e usava um tom de voz calmo que não era seu habitual.


Antes de sair, sem perder a calma na voz, porém um pouco tremula e deixando lagrimas rebeldes caírem, ela foi se despedir de Da Vinci. 


Pegou uma garrafa de vinho que estava em cima da minha mesa e se dirigiu a porta.


- Eu sempre tive uma filosofia de que um pé na bunda é um excelente impulso, espero que funcione realmente para você. – Ela deixava aquelas últimas palavras saírem com um tom mais raivoso, um tom mais Mafiosa.


E quando mais lagrimas rebeldes resolveram aparecer, ela bateu a porta e saiu levando minha garrafa de vinho.


Aquilo teve um efeito devastador e me empurrou ainda mais para minha zona escura.


Isso aconteceu uma semana antes do crime, e por isso que eu estava ali me debulhando em lagrimas sozinho, sem ninguém para me consolar.


Vigário estava de coração em pedaços, cada dia mais afundado naquela lama negra que adorava lhe consumir e a caminho da cadeia.


O meu luto era cada vez mais dolorido.


Eu pegava no sono e acordava bruscamente logo em seguida, assistindo à cena do meu amigo morto ali na minha frente.


Era muito real.


Parecia estar vivendo aquela cena.


Por algumas horas me questionei sobre a possibilidade de ter cometido aquele crime bêbado ou em estado de sonambulismo.


Algo que poderia me explicar o porquê da falta de memórias e ainda assim sonhos tão reais.


Eu comecei a questionar minha sanidade.


Comecei até mesmo a questionar se eu estava morto e aquilo ali era uma espécie de inferno.


Faria sentido depois da presença de Nero e Calígula com o anúncio de como tudo ia mudar.


Fiquei mais uma semana trancado.


Comia raramente e bebia o máximo que podia com alguns remédios controlados, na intenção de apagar.


Se eu tivesse um sono sem isso, era ficar vivendo em loop uma cena que eu nem mesmo tinha vivido.


Porém, que eu tinha criado para um dos meus romances.


Eu tinha me amaldiçoado e não sabia como terminar isso.


A esperança tinha morrido.


A vida parecia me chutar.


Minha reação era agressiva e mostrando o dedo do meio.


E aí a vida chutava mais.


Então bateram na porta.


La estava eu tentando por meu corpo completamente enfraquecido de pé e indo atender aquelas impacientes batidas.


Rudolph tinha um semblante abatido e serio ao mesmo tempo.


Atrás dele, dezenas de policiais.


- Vigário, você está sendo preso. – Rudolph falava se lamentando enquanto um policial dava um passo à frente e me algemava.


Eu não tinha mais reação e nem mesmo força para alguma.


Apenas olhei para Rudolph e pedi para cuidar de Da Vinci e Filé de peixe.


Ele apenas concordou com a cabeça como se não tivesse mais nenhuma força também.


A caminho da viatura, enchi meus pulmões de ar para aproveitar o que poderia ser a minha última vista da bela Florença em liberdade.



Mas a junção do meu coquetel de álcool e medicamentos com a bela pancada que o policial deu com minha cabeça na entrada do carro, foi bastante eficiente para me tirar esse último suspiro.