Ela adorava repetir que não pertencia a esse lugar.
Esse era seu mantra.
Começou com uma adolescência conturbada.
Navegou por todo tipo de negatividade que a ansiedade e depressão pode trazer.
Cresceu lutando no que ela considerava ser sempre seu limite.
Flertou algumas vezes com suicídio.
Era vista pela família como uma jovem que queria só chamar atenção e bastante dramática.
Mas a luta dela era real.
Acompanhei de perto.
Ela não sabia porque sofria, mas a dor estava sempre ali.
Quantos dias ela passou sem sair da cama por falta de motivação de viver?
Centenas.
Problemas alimentares começaram a rodeá-la.
Em algum momento as drogas também se apresentaram como uma saída.
As ilegais.
Essa fase foi um dos episódios que me deixaram mais apreensivo.
Eu sabia do potencial que isso tinha de arruiná-la de vez.
As drogas legais ela já estava em uma dosagem saturada.
Para algum comprimido fazer efeito, ela os tomava como se fosse pequenas balas.
Era algo assustador que nunca me acostumei.
Mesmo assim ela continuava com os mesmos problemas.
Insônia virou um amigo íntimo.
Ela chegou a fase de auto mutilação, pequenos cortes.
Aquela dor que ela se infligia era uma forma de escapar da dor que ela sentia
na alma.
Acredito que a partir de um momento, ninguém mais acreditava que ela
conseguiria ter um
final feliz.
Amigos se afastaram.
Família usava da sua condição para ter um controle psicológico que eu sempre
enxerguei como abusivo.
Eles não tinham fé nela.
Nunca tiveram.
Parte da merda que ela estava foi potencializada por essa falta de apoio dentro
de casa.
Ela era ofendida por não ter forças para levantar da cama.
Se ela sorrisse ,era julgada e condenada a ser uma farsante que não podia
sorrir por estar em depressão.
Eu adorava seu sorriso.
Eu adorava apoiá-la.
Ela tinha uma imaginação e uma mente aberta com um potencial de ganhar o mundo
que ficava apagado por toda essa situação.
Minha missão com ela era resgatar esse potencial.
Com o passar dos anos ele foi para um caminho meio sem volta.
Criou uma casca de proteção.
Começou a ser mais fria.
Cortou grande parte da sua humanidade e empatia para evitar novas dores.
Ela então se prendeu a tudo que as pessoas que jogavam ela para baixo queriam.
Uma vida presa na bolha com seu potencial omitido.
Aqueles almoços familiares cheio de gente mas que traziam aquele enorme vazio.
Ela não sentia nada, era só um personagem que a trouxe um pouco mais de
conforto.
Eu olhava nos seus olhos, dos quais eu sempre fui apaixonado e eles estavam
opacos e sem brilhos.
Eu sempre tive o dom de ver sua energia.
Mesmo de longe.
E aquela energia do momento era fraca, como há muito tempo não via.
Mesmo com aquele sorriso forçado de uma família de sitcom americano.
Ela sempre quis o mundo.
O mundo sempre quis ela.
Por isso ela adorava dizer que não pertencia à onde ela estava.
Eu as vezes me sinto meio culpado de não pensar nela como antes.
De ter fracassado na missão que eu me dei de cuidar dela e fazer com que ela
conseguisse encontrar o seu lugar.
Se ela lesse isso aqui com certeza estaria dando aquele sorriso de quando ela
sempre dizia que estava tudo bem.
Mesmo ela sabendo que eu sentia a verdade.
Tivemos vários momentos intensos.
Eu sempre sentia meu corpo tremer com ela.
Eu gostava de dizer que era seu super poder.
Lembro de prometê-la que iria cuidar dela pelo resto da vida, enquanto
acariciava seus cabelos.
Ela dava de ombros dizendo que eu deveria fazer algo de mais importante na
minha vida.
Ela sempre teve essa autoproteção a rejeição.
Nós sempre fomos opostos.
E essa sempre foi a aposta.
Eu tinha certeza que queria ficar ali naquela bolha com ela.
Enquanto ela parecia querer o mundo.
E a ironia foi exatamente essa.
Ela ficou e eu voei.
Em algum momento achei que a vida estava me pregando uma peça.
Toda vez que tenho duvido do meu lugar, se realmente pertenço aquilo ali ,eu
lembro dela.
Ela virou um lembrete de que eu quero o mundo.
A última vez que nos falamos ,ela estava com aquele sorrisinho irônico de
sempre.
Aparentemente fora de toda aquela escuridão que a perseguia nos anos
anteriores.
Mas com aquele olhar completamente perdido e sem luz.
Ela estava menos feliz do que imaginava estar.
Porem estava saudável como nunca antes.
E era isso que importava de verdade.
Nesse último contato aquela frase que ela tanto gostava foram suas últimas
palavras jogadas no ar.
- Acho que eu não pertenço a isso aqui. – Sem deixar seu sorriso irônico e
tristonho se desfazer.
Eu fiquei ali por alguns segundos olhando para ela, segundos que pareciam uma
eternidade.
Eu sabia que não a veria mais.
Minhas últimas palavras talvez tenham sido um balde de agua fria nela, mas ela
precisava seguir.
- Na verdade acho que você pertence, finalmente você achou o seu lugar. –
As palavras saiam da minha boca com o tom de certeza que eu precisava
demonstrar.
Ela me olhava incrédula ao ouvir aquilo.
Silêncio nos tomou por alguns segundos mais.
Ela simplesmente virou as costas e foi embora.
Naquele momento por mais que doesse, eu tinha certeza de estar protegendo ela
de alguma forma.
Eu estava destroçado.
Tenho cicatrizes até hoje.
Ela também.
Nós dois somos um amontoado de cicatrizes ambulantes.
Mas sobrevivemos e essa é a regra a se seguir desde então.
Hoje em dia no meio da noite eu acordo com a sensação de que ela está pensando
em mim.
E ali é o momento que eu tenho certeza de onde eu realmente pertenço.