Dentro da mochila tinha um dispositivo que produzia o som e o ajudava naquela pegadinha diária.
Sempre você podia ver pessoas horrorizadas.
Quando ele me via, junto ao seu cachimbo de uma madeira que chamava muita atenção, ele sempre sorria.
- Você já conhece essa peste, sabe como é - Falava com um tom de intimidade para mim.
Nos segundos seguintes eu era julgado pelos olhos das pessoas que ainda não sabia daquela piada infame.
Era sempre meio-constrangedor, tenho que admitir.
Também era divertido de ver o Padre que morava de frente para o meu apartamento.
Ele era gente fina, mas parecia ter problemas com álcool, já que todo dia chegava com dois fardos de cervejas na igreja.
Sempre me convidava para ir beber com ele, e algumas vezes até já fui.
Mas essa cerveja não era grátis, sempre vinha com um sermão da montanha.
E de dogmas eu já tinha o suficiente.
Dessa vez ele não esqueceu do seu convite de sempre, enquanto cartomante achava graça daquele hospício que era minha rotina matinal.
Ainda e não menos importante, tinha Mr. Wolf e Riley ali com aquele tom cansado, mas sempre otimista na mesma esquina de sempre.
Mr. Wolf morava nas ruas já fazia anos, era a pessoa que melhor entendia os meus demónios, o como ele gostava de dizer, os meus "dois lobos".
Sempre parava para trocar ideia com ele.
Era um coroa bem inteligente que parecia estar ali por opção.
Riley, sua vizinha mais recente, morava nas ruas fazia pouco tempo.
Ela dizia que ainda não tinha feito aniversario de 1 ano como uma moradora de rua oficial.
Era bem nova, enfrentava problemas com drogas e tinha um passado familiar conturbado e que trazia com ela vários traumas e cicatrizes.
Já tinha a malandragem das ruas, o que não protegia ela 100%.
Mas comigo, ela sempre desarmava esses gatilhos de segurança, e se abria como numa sessão de terapia.
Gostava de conversar com ela.
Ela tinha uma doçura que não deveria pertencer mais a ela depois de todo esse sofrimento.
- Nossa, como você é linda - A cartomante dizia para Riley com um brilho no olhar.
Riley tinha aqueles cabelos de fogo bem peculiar de uma legítima escocesa.
Sotaque mais cantado e mesmo mais caído, um sorriso bem forte.
Riley mudava o semblante sempre que achava que deveria se proteger.
Mas ali olhando para mim de rabo de olho, enquanto recebia o elogio, entendeu que eu consentia com a cabeça sobre a cartomante.
Logo o seu rosto voltava a expressão desprotegida que ela tinha-só com quem confiava.
O rosto da rua era intimidador e essa era uma das armas que ela tinha para tentar se proteger nas ruas.
Além da arma de choque, que eu ilegalmente talvez lhe tenha dado para proteção, depois que soube da violência que ela tinha sofrido em uma dessas noites impiedosas de um centro urbano.
Ficamos ali por um 5 minutos conversando com os dois, e, ao mesmo tempo, como sempre, via os olhares de reprovação de uma pequena elite bem babaca da cidade.
As pessoas acham-se superiores por qualquer motivo e isso faz delas inferiores.
A rua sempre me trouxe bastante para a minha escrita, para o meu caráter e para o meu crescimento como pessoa.
Os que ignoram isso, estão geralmente mortos por dentro.
E de que vale uma vida, se você não pode viver?
Eles não tinham quase nada material ou mesmo de necessidades básicas e mesmo assim pareciam ter o mundo.
Talvez o melhor dos mundos seja só uma questão de ponto de vista.
Mr. Wolf era um cara que gostava mais de ter uma vida sozinho, diz até que foi opção dele sair de casa e largar tudo para trás, apenas por paz.
Mas ele, de primeira, aceitou o meu pedido e logo apadrinhou Riley como a sua protegida nas ruas.
E hoje em dia além de vizinhos, eram grandes amigos.
Nos tínhamos um acordo de cavaleiros, onde Riley sempre entrava em contato comigo para emergências e coisas básicas que faltassem, para ela e Mr. Wolf.
Ele jamais pediria qualquer tipo de ajuda, mas era o primeiro a se oferecer para ajudar.
Nada mais justo, do que eu tentar ser uma espécie de anjo de guarda, mesmo que seja daqueles bem relapsos e distraídos.
E raramente Riley procurava-me.
A última vez foi algumas pontadas no "coração" que Mr. Wolf estava tendo, e no meio da noite, fui com uma ambulância.
Ele rosnava-me por toda aquela atenção, mas, ao mesmo tempo, via nos seus olhos que ele estava com medo de morrer.
No final, era só gases e terminávamos a noite, eu, ele, Riley e o socorrista tomando uma e dando gargalhadas sobre.
A cartomante parecia feliz e, ao mesmo tempo, ansiosa.
Isso preocupava-me um pouco.
Eu não queria magoá-la.
E realmente não sabia o propósito daquela visita.
Sentamos num gramado do lado do castelo onde eu gostava de ir para pensar, ler ou mesmo escrever nos dias de calor.
- Eu parei de ouvir os meus medos e comecei a ouvir os meus sonhos. - Ela falava olhando para o horizonte.
Aquela frase atingiu-me de alguma forma, parecia um deja vu ou mesmo uma citação dos meus livros.
Mas não era.
Ela me dizia que era uma frase que falei para ela, quando fui visitá-la num sonho.
Com a cartomante tinha dessas coisas, e eu era sempre pego de surpresa.
Segundo ela, nesse sonho, jogou tarô para mim pela primeira vez e a carta que saiu logo de primeira era da morte.
- Acho que como você sabe, chegou um pouco atrasada, já passamos dessa fase. - Eu ironizava o meu passado recente sempre que tinha oportunidade.
Ela não deixava a sua leveza de lado e nem se afetava com as minhas ironias.
Então ficou la com a maior paciência do mundo tentando-me explicar que aquilo representava um ponto final de uma fase e o início de uma nova era.
E que no sonho eu pedia a sua ajuda para esses próximos passos.
Na verdade, a Cartomante sempre acreditou mais em mim do que eu mesmo.
- Então como começo essa nova fase? - Eu questionava sem nenhuma ironia dessa vez.
- A sua liberdade é poder escolher seu caminho e como reagir a ele. - Falava como uma sábia eremita.
Desde aquela tarde, a Cartomante ficou na minha casa por 1 mês.
Me colocou em uma rotina alimentar mais saudável.
Trabalhou arduamente para melhorar meu astral, ou como ela dizia, limpou toda minha aura.
Resolveu me levar para academia todas as manhãs.
Cuidou de mim como se fosse uma missão muito importante para ela.
Riley ate chegou a dizer que eu parecia mais feliz por aqueles dias.
Como uma boa DJ, ela deletou minha playlist.
Dizia que eu me expressava de forma muito confusa pelas músicas que eu escolhia.
Depois desse 1 mês, ela estava indo embora, pois ia começar sua turnê pela Europa.
Essa era nossa segunda despedida.
E sempre parecia ser a última.
Eu também ia me jogar no mundo e tentar começar essa nova fase que ela tanto falava.
Minha energia estava completamente diferente, meu corpo, minha cabeça e até mesmo meu espiritual.
Mas como uma DJ de respeito internacional, sempre tinha uma última música para tocar.
Ela me deu um beijo longo, se afastou sorrindo com suas lagrimas descendo pelo rosto como cristais.
- Você não vai chorar, eu não vou gritar. - Ela cantarolava e ia entrando no carro.
Fiquei ali com aquela frase na cabeça enquanto o carro ia embora.
Na última cena da Cartomante em câmera lenta, tocava de fundo Alien ant Farm - Movies.
Seria um final?
Pode subir os créditos que ficarei no cinema esperando para ver se tem cena pós-créditos.