Memorias afetivas eram um problema que eu tinha.
Fosse elas positivas ou negativas.
Não gostava de ser teletransportado para o passado.
O passado era algo que eu tentava manter enterrado.
Parecia ser a minha fase mais saudável, depois que decidi parar de remoer coisas que já tinham acontecido.
Mas sei la, o passado sempre dava um jeito de sorrir para mim e isso me dava uma pequena desestabilizada.
Porem, nada de mais também.
Vigário não tinha deixado de ser uma rocha para uma folha de isopor da noite para o dia.
Eu tenho dois exemplos clássicos, que mostram como memorias afetivas me pegam de verdade.
Lembro até hoje do cheiro da menina do meu primeiro beijo.
E não tem romantismo nisso.
Eu mal lembro da menina em si, apenas do perfume.
Se esse cheiro aparece em algum lugar que eu esteja, eu sou levado para sensações daquele momento.
E isso me deixa maluco.
Porque sinto que até meu espirito se molda aquela memoria.
Me sinto um adolescente novamente, mesmo no auge dos meus 30 e poucos anos.
O cheiro é muito bom, tenho que admitir, mas não saberia descrever.
Meu segundo grande problema com memória afetiva é em relação à sensação de câmera lenta.
Esse me dá uns gatilhos mais perigosos.
Eu não sei que tipo de trauma que eu carrego em relação a essa sensação.
Mas hoje em dia, se paro para ouvir alguém muito calmo, com tranquilidade na fala, eu começo uma mini crise de ansiedade
Volta aquela sensação como se todo meu mundo estivesse em câmera lenta, e eu só quero sair de la e não consigo.
Eu refletia sobre essas memórias tomando um vinho na janela enquanto assistia nevar la fora.
Pessoas fantasiadas lotavam a cidade, já que era noite de Halloween.
Para um cara que odiava o clima natalino como eu, a temporada de dia das bruxas era um respiro.
Faith aparecia na minha porta com um sorriso no rosto que era fácil de identificar o porquê.
O sorriso que anunciava o caos.
- Temos visita - Ela anunciava.
E antes de qualquer outra palavra, la estava ao seu lado, o caos antes anunciado por sinais.
A Gato preto, A ladra de corações.
Com aquela aura de liberdade que dominava o ambiente que ela chegava, vinha com um convite já aceito anteriormente por Faith.
- Nos vamos para uma festa de Halloween agora, se arrume. - Falava jogando uma sacola com uma fantasia na minha direção.
Aquilo parecia uma piada de mau gosto.
A gato preto estava em uma temporada na Irlanda, descansando antes de voltar para o mundo.
A vitima do momento que ela tentava roubar o coração, era eu.
Em minutos, Faith já estava vestida de diaba e a Gato negro com uma fantasia de cigana.
Cigana também era um dos apelidos que eu gostava de chama la, pois roubava um coração e ia para a próxima cidade.
Minha fantasia era de vampiro, bem simples.
Elas sabiam e já tinham planejado isso anteriormente, que se fosse algo muito chamativo, eu não iria.
Pois bem, la estava eu em uma experiência social que eu, por livre espontânea vontade, jamais optaria por fazer.
Eu sempre soube ler as expressões de Faith, e algo na falta de informação dela sobre a festa e algumas linhas faciais me diziam que eu teria problema.
No meio do caminho fui sendo informado lentamente sobre a festa e minha paz de espírito foi se despedindo.
John e a turca do ácido já estavam la a minha espera, com um convidado especial.
Latini.
Não existe pessoa melhor para ser o caos encarnado.
A festa era de um desconhecido, que estava muito feliz em me receber, mesmo eu não sabendo da festa até então.
E em algum momento Faith me avisava que a festa era um pouco além do que eu podia esperar, ainda falando que eu iria me sentir em um labirinto.
Dei de ombro com aquelas informações codificadas, que não faziam sentido até então.
Chegando na festa, a porta se abria e aquela noite já começava a se mostrar com o potencial que teria.
Na recepção, a Francesa com sua roupa de unicórnio de sempre, nos recebia com um grande sorriso e um abraço longo.
Eu não a via fazia um bom tempo e tirando que ela era insana, eu sempre me dei muito bem com ela.
Ao lado dela, o dono da casa, que parecia emocionado com minha presença enquanto eu o cumprimentava constrangido.
Odiava essa vibe popular que me seguia devido à minha carreira, mas eu sempre soube disfarçar bem para não ser um babaca.
O dono da casa apertava minha mão de uma forma nervosa, sem largar e meio que suando.
Ele realmente parecia estar nervoso na sua fantasia de pirata tão genérica quanto a minha de vampiro.
Um beijo no pescoço me tirava daquela situação constrangedora e me colocava em outra.
Memorias.
Sempre elas, e mesmo que não fizesse sentido, eu reconhecia aquele gesto.
La estava ela, a Guitarrista.
- Segunda vez no ano que nos encontramos, já podemos casar. - Ela se divertia.
Sua fantasia era uma espécie de menina punk inglesa.
Enquanto ela me abraçava, apontava para uma direção que mesmo com minha miopia,eu conseguia identificar aquela imagem.
O Rockstar, vestido de rockstar mesmo e parecia que ninguém o reconhecia.
E Latini, vestido de Diabo, para desespero de Faith.
Latini vinha me abraçar já com seu astral afetado, e por toda sua fantasia ser vermelha, foi bem fácil de identificar os pontos brancos que me diziam que ele já tinha começado sua festinha.
A Gato negro me pegou por um braço e Faith pelo outro e me levaram para dentro da festa, porque diziam que tinham mais pessoas esperando por mim.
Identifiquei Ari, Elliot e John de costas em um grupo grande de pessoas.
Ari estava de imperador romano, com muito ouro de verdade na sua fantasia, e ele estava acompanhado de uma modelo eslovaca que se vestia de alguma divindade.
Era difícil de explicar toda aquela beleza.
- É Faith, parece que o inferno não vai se criar aqui hoje - Eu soltava meus comentários idiotas, que eram automaticamente seguidos de um socão de Faith no meu ombro sofrido.
Essa coisa mal resolvida de Faith e Ari estava sempre no ar.
Elliot estava vestido de algum personagem de anime, que eu não iria reconhecer, com sua namorada, a cigana romena do Circo.
Depois daquele primeiro encontro, eles conseguiram se reencontrar e começaram um relacionamento.
John e a Turca do ácido estavam vestidos como hippies do Woodstock.
- Você precisa ver a terceira hippie dessa festa - Dizia a Turca, puxando um braço.
Eis que me aparece a reencarnação da Janis Joplin, vestida como a própria.
E enquanto eu ainda tentava recuperar o folego, uma mulher vestida de cupido pulava em cima de mim e outra duas vinham sorridente ao meu encontro.
Maeve, a Loba de Wall Street e a Maria Madalena de Hollywood também estavam la.
A loba se vestia de bruxa.
Maria Madalena, parecia estar exatamente como seu personagem era no seu filme de sucesso.
Maeve na sua versão cupido, parecia uma piada bem pensada, se pensarmos no nosso passado.
No canto, a minha vizinha estava vestida de gêmeas do filme Iluminado.
Aquela também parecia ser uma fantasia pensada, nesse caso como uma homenagem a sua irmã.
Ela fez um sinal meio seco de longe, mais por educação do que por vontade.
Desde minha volta, o clima nunca mais foi o mesmo entre a gente.
Aquela festa era uma overdose de informação.
Para onde eu olhasse, eu via conhecidos e tambem via problemas.
Sempre que me sentia desconfortável, olhava em volta e estava sendo encarado por alguém.
E um momento, senti essa sensação e quando olhei, na minha direita me encarava a doce pecado e na minha esquerda me encarava a menina da neve.
Aquilo parecia um pesadelo.
Ali caiu minha ficha sobre o labirinto que Faith falou no caminho para a festa.
Meus três minotauros se reuniram no mesmo lugar e eu não tinha nem uma fantasia decente que me escondesse.
Tive meu momento de atenção com todas, mesmo que de forma rápida, pois sentia que tinha uma competição no ar.
Faith era meu porto seguro.
Ela também parecia estar meio desconfortável.
Não era normal Ari aparecer acompanhando em algum lugar que Faith estivesse, então aquilo parecia ser um sinal de um relacionamento mais serio.
A guitarrista se aproximou de nos dois e disse que estávamos com um semblante de desconforto e que a Turca tinha mandado entregar algo para a gente.
A Turca iria honrar seu nome até o final, e o presente dela nada mais era do que um acido para mim e Faith.
Enquanto a guitarrista cortava em 4 pedaços, Maeve,minha cupido aparecia sorrindo e pegando um pedaço para ela.
Colocava outro na minha língua e um na língua de Faith, enquanto a guitarrista tomava o último como um pacto.
Aquilo parecia ser muito necessário naquela situação.
Acho que depois de um tempo eu e Faith desencanamos.
A festa estava uma loucura.
A maioria das pessoas estavam insanas.
Latini e o Rockstar cheiravam cocaína nos peitos de algumas mulheres que nunca tinha visto.
De longe, Latini abria um sorriso e me convidava a participar.
Prontamente, eu movia minha cabeça negativamente para ele.
- Não trouxe seu casaco de novo para a trilha Vigário? - A guitarrista me questionava gargalhando.
Essa era sempre minha resposta para fugir da cocaína.
Eu achava cocaína uma das vibes mais baixo astral que existia, e não tinha nenhum interesse de ir para esses lados.
Elliot e a cigana estavam em clima de romance total, e eu estava orgulhoso de ver o que Elliot tinha se transformado.
Ari e a super modelo, estavam bem reservados aproveitando a festa de forma tranquila.
Minha vizinha pareceu abandonar a festa, logo depois que minha presença não foi mais suportável para ela.
Maria Madalena, a Loba e Janis estavam se divertindo juntas como nunca.
- Vigário, hoje nos temos uma surpresa para você depois da festa. - As três falavam com planos diabólicos.
A Gato preto passava mal no banheiro enquanto, como uma ironia do destino, a Menina da neve segurava seu cabelo.
Meu Doce pecado falou por um tempo comigo, mas disse que não se sentia bem e também abandonou a festa mais cedo do que o esperado.
Era muitas pessoas para dar atenção, ou para tentar ignorar com carinho.
O anfitrião também aparecia do nada, com seu sorriso nervoso e uma piada sem graça para puxar assunto.
Nessas horas minha fantasia podia ter o modo morcego e me tirar dali voando.
Mas eu sorria sem graça tentando ser o menos babaca possível.
Aquele Halloween parecia uma sexta-feira 13.
Em algum momento aquele acido especial da Turca, bateu.
E fui levado para uma dimensão mais confortável.
Já andava pela festa mais seguro.
Indo ao banheiro senti aquela sensação, que pensava sobre no início da noite.
Aquele perfume, que era minha maior memória afetiva.
- Seria muito absurdo eu te pedir um autógrafo? - Uma mulher vestida de Cleópatra me perguntava meio sem jeito.
- Não tenho papel, nem caneta e nem acho que conseguiria escrever algo nessa altura do campeonato - Eu respondia sem nenhuma improvisação na desculpa.
Enquanto ela sorria, dizendo que também não tinha e como um raio, me beijava sem cerimônia.
Para mim, pareceu um beijo demorado, e tenho que admitir que estava curtindo.
Porque mesmo sem ter ideia de quem era aquela Cleópatra, eu estava sentindo aquele momento novamente, do meu primeiro beijo.
E pensar isso, me soava idiota e, ao mesmo tempo, engraçado.
Da mesma forma que me beijou sem muita fala, saiu com um sorriso.
A guitarrista veio ao meu encontro e se divertia com aquela cena.
Botou mais alguma coisa na minha língua e falou que dali em diante, eu era responsabilidade dela.
E dai em diante, só tenho flashes.
O meu teor alcoólico com a guitarrista aumentou consideravelmente, já que a gente sempre que se via, se jogava na tequila.
E claro, ela estava me colocando aditivos.
A música soava diferente.
Me relaxava.
Eu sempre estava com alguma das meninas na minha volta, e a guitarrista sempre do lado.
Foi uma noite interessante.
Mas perdi o controle como não fazia há tempos.
O meu Halloween parecia interminável.
Essa foi a primeira coisa que veio na minha cabeça, quando senti aquela secura na boca.
A cabeça ainda rodava e senti meu corpo meio sem espaço.
Eu conhecia aquela sensação.
A parte da secura e a cabeça rodando não era tão preocupante.
Mas a falta de espaço sim.
Tinha dormido com alguém.
Respirei fundo e resolvi encarar aquela situação.
Minhas apostas eram a guitarrista.
Mas parece que eu teria que começar uma investigação para entender aquilo.
Minhas primeiras imagens foram ver roupas espalhadas pelo quarto.
Na cama ao meu lado, estavam Faith e minha vizinha.
Eu não dormia com Faith e estava morto para a minha vizinha.
Ela, por sinal, tinha ido embora cedo da festa.
Aquela não era minha cama, mas eu reconhecia o quarto.
E isso só piorava a história.
Eu estava no apartamento de cima do meu, logo, na cama da vizinha.
Antes que eu conseguisse reagir e correr daquela situação, as duas abriram os olhos com o mesmo tom de surpresa no ar.
Parece que o dia das bruxas iria se arrastar por um tempo.