Ela servia nossas doses de whiskey.
A minha com gelo e a dela a la cowboy em dose dupla.
Ela iria para mais duas doses duplas.
Aquilo não fazia sentido.
Eu estava sóbrio novamente e nem o whiskey me animava como antes.
Então preferi deixar também a minha dose para ela.
Ela bebia como alguém que tinha herdado minha falta de álcool de todo esse tempo.
Esse demônio gritava dia e noite.
Eu conseguia ouvir suas súplicas por álcool.
Me arrepiava algumas vezes.
Outras, me jogava em uma bad vibe.
Mas no geral não sentia vontade de beber.
Então, aparentemente meu demônio mudou de corpo.
Ela bebia como meus velhos tempos.
Além de outras coisitas mais…
Ela era indomável mesmo para a arte sublime de se embriagar.
Engraçado que minha vida estava de cabeça para baixo, e ela vinha como a último peça que derruba toda a torre de copos.
Mas ela sorria.
Sorria como ninguém.
Eu, que já estava me acostumando com sorrisos falsos, parecia encontrar algo novo naquele sorriso.
E ela me pegou de primeira.
Sem falar uma palavra.
Só sorrindo para mim.
E eu, que corria de relacionamentos nessa fase da vida, me encontrava de novo naquela paixão incontrolável.
Vigário era mais uma vez presa fácil de um sorriso bonito.
E ela já chegou diferente de todas.
Sem manipulação emocional.
Não existiam joguinhos.
O que até me assustou no início.
Não sabia que existia mais dessa raça.
Mas ela tinha um problema.
Lógico,sempre tem.
Pontualidade era um pecado para ela.
E isso revirava minha úlcera.
Enquanto escrevo esse conto ,vejo seis ligações perdidas.
E era ela.
Antes que eu possa retornar,ela faz a sétima ligação.
“tô a meia hora daí”
3 horas depois do horário marcado.
Ela achava que o dia dela tinha que ter 48 horas.
Trabalhava para duas empresas e ainda queria ter uma vida social e um relacionamento.
Parece até que a vida não ensinou nada.
No geral, seus atrasos não seguiam esse padrão ou eu ja teria me enforcado.
Eram coisas de 15 a 20 minutos,mas a lógica por trás dos atrasos eram somente,querer resolver tudo em um dia.
E ai ela abria a porta com aquele sorriso hipnótico e pedia desculpas como ninguém.
Nem o gato de botas era páreo para ela.
Ela tinha um estilo tatuada mas do tipo que não curtia mostrá-las.
Mesmo sendo muitas.
Ela dizia que suas tatuagens não foram feitas para entreter marmanjos ou facilitar a entrada em um grupo de adolescentes tardias.
Ela era ácida pra caralho.
O que eu achava lindo.
Minha família seria dizimada em uma mesa de bar com ela.
Eu não fazia comparação dela com o passado,vivia daquele ponto de partida como se o passado tivesse sido enterrado.
E foi.
Enterrado no jardim do esquecimento.
Ela sempre dizia para mim “essa noite vai ser como o encontro do sol e a lua”.
E ate dessa referência eu me desapeguei e deixei que ela desse um novo sentido.
Era um novo capítulo.
Melhor,era um novo livro.
Com potencial para encher uma biblioteca com cada fase que viria.
Ela não gostava de escritores.
Talvez por isso tenha se apaixonado por mim.
Me encontrou na época de zero inspiração,zero escrita.
No dia do que ela chamou de nosso aniversário de namoro,ela me deu pacote de sopa de letrinhas.
Como se fosse o estímulo irônico para eu nunca voltar a escrever.
Ela dizia que minha escrita seduzia o mundo e os enganava.
Ela não se importava de eu nao beber.
Ela não me achava um chato sem álcool,o que era como eu me enxergava.
E isso me estimulava a curtir minha fase não alcoólica.
Ela não precisava do meu dinheiro,tinha mais que eu.
E isso era algo que para mim nunca fez diferença,mas nessa relação estava sendo um diferencial.
Sem malabares com facas flamejantes.
Para ser sincero,eu não tinha ideia de onde estava meu cartão por eras.
Ela era louca ,o que eu amava.
Mas nunca sua loucura tentou me transformar em refém.
A loucura só aparecia para complementar a gente.
A minha se dava muito bem com a dela.
Eu estava meio sem rumo e decidido a ficar assim por um tempo.
E ela topou essa.
E topou de verdade.
Sem encenação ou ganhando tempo para me convencer de outro caminho.
Ela já tinha entendido que eu nao colocava curativos nas feridas.
Eu esperava cicatrizar e só ai partia para outra fase.
Ela me entendeu.
E como é bom dizer isso.
Saber que alguém te entendeu de verdade.
Agora,está aqui na minha frente,pintando minhas unhas dos pés de preto que foi a primeira coisa que ela viu em mim.
E ela adorava.
Dizia que fazia parte da minha essência.
E ela continua sorrindo enquanto pintava minhas unhas.
E enquanto isso eu ficava viajando pelas suas tatuagens.
Uma a uma,ficava horas assim,olhando suas milhares de tatuagens,cada detalhe.
Sentindo com as mãos as linhas de cada contorno.
Sempre pedindo a ela para explicar o sentido de cada uma,o sentimento que aquela tatuagem trazia.
E esse movimento era como se eu estivesse a despindo,mas despindo a alma.
E ela tinha a alma mas linda que eu podia tocar.
E eu já ate tinha esquecido as 3 horas e meia de atraso e dava um trago no whiskey pelos velhos e bons tempos do Vigário.
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