Esse texto deveria ter sido escrito no último dia do ano passado, mas foi escrito no primeiro do ano atual.
Porque?
Porque eu estava trancando no meu novo apartamento em Florença bebendo e curtindo o que parecia ser uma sensação boa que essa escuridão me trazia.
Eu estava novamente entregue ao meu lado sombrio.
Afundado na lama do psicológico fragilizado.
Meu apartamento tem uma vista de frente para o rio Arno, o que seriam um dos lugares mais barulhentos dessa noite.
É estranho ver tantas pessoas felizes e esperançosas por causa de mais uma volta que a terra deu ao redor do sol.
Quem diria que você que ouviu lá na sua infância, a tia do colégio falar sobre Translação e dava de ombro, hoje em dia teria essa data como algo tão importante e representativo.
Eu consigo entender a representatividade de um termino de ciclo.
As pessoas precisam disso.
Isso parece dar esperança.
Mas em geral é bem ilusório.
Eu nunca fui o cara do ano novo ou dos ciclos.
Não consigo imaginar que minha vida não seja uma linha reta.
Pensar em ciclos e renovação é tedioso demais para essa mente arcaica e cansada.
Mas com o passar dos anos, talvez pelas influência das pessoas mais próximas, comecei a adquirir certos movimentos naturais de uma vida social em datas sociais.
Relacionamentos foram os maiores culpados por ajudar nessa adaptação.
Eu sou um espírito completamente sem luz vagando por ai.
Não tenho ambição alguma.
E sou entediado por natureza.
Me alimento apenas de romances e álcool.
E tem época que nem mesmo romances são bem vindos.
Como a fase atual.
A cidade estava toda iluminada.
Ruas lotadas e restaurantes na sua capacidade máxima.
Era dia 31 de dezembro, e o final de um ciclo e começo de um novo estava para acontecer.
Eu estava trancado no meu quarto a mais de uma semana.
Sem contato com nada do mundo exterior.
Ari me conhecia o suficiente para saber que não era para me incomodar nessas fases.
No auge de toda essa energia negativa, eu precisava de uma espécie de internação que eu mesmo me recomendava e controlava.
Resolvi que hoje era o dia de sair desse retiro espiritual charlatão que eu criei.
Tomei um banho quente e fiquei ali por uma hora.
Deixando a agua descer pelo meu corpo, o mais quente que podia suportar.
Quando terminei ,podia ver no espelho o corpo todo avermelhado depois daquele belo banho.
Aparei minha barba que não via uma navalha a séculos.
Coloquei meu moletom velho, uma toca de frio e meu chinelo de sempre e resolvi ir a rua.
Eu parecia estar um pouco mais leve hoje, porém isso se devia mais pelo banho do que pelo movimento da terra.
As ruas estavam completamente lotadas.
Tanto pelo senhores e senhoras de Florença, como pelos turistas do mundo todo.
A impressão que eu tenho é que Florença seja uma cidade com a população mais velha, desde a época de Da Vinci.
Todo aquele ar de cultura e sabedoria só consegue se fincar em um lugar com uma população mais madura.
Nem mesmo toda aqueles turista que andavam de um lado para o outro tiravam o charme da cidade dos Lírios.
Me aproximando da minha preferida Piazzale Degli Uffizi, percebi que era motivo de atenção.
Algumas pessoas me olhavam e sorriam.
Em um primeiro momento eu só tive a sensação de que as pessoas me olhavam.
Aquele peso que parece dar ,o ar vai ficando mais denso e ai você percebe que está sendo observado.
Em seguida, já com essa constatação ,eu comecei a fazer minha interpretação da situação.
E as pessoas me olhavam cada vez mais e davam pequenas risadas.
Eu estava tão desconectado do mundo ,isolado por dias que havia esquecido completamente de onde estava.
Parei repentinamente e dei de cara com o meu amigo mímico, que me seguia fazendo o seu show.
Repetia meus movimentos com uma lata de cerveja imaginaria na mão e uma cara fechada, que era a imagem que ele sempre me representava.
E eu não tinha uma lata de cerveja nesse momento, infelizmente.
Assim que ele foi descoberto, deu um grito agudo como sempre fazia quando encerrava seu show.
“Grazie”.
Seu chapéu para recolher dinheiro já estava à frente do público, e ele apenas foi pega-lo de volta.
Agradeceu novamente, agora com sua voz normal e voltou ao meu encontro.
-Então nosso escritor marginal resolveu aparecer novamente, achei que tinha voltado para Irlanda. - Ele falava com uma voz fina sem sair do personagem.
- Você já pode falar com sua voz normal, o show acabou.
Eu estava em uma espécie de retiro no meu mundo, acontece em vez enquanto dependendo do movimento da terra. – Eu falava sorrindo.
- Vigário, as vezes eu saio do personagem, mas ele não sai de mim, é uma das loucuras que a arte te proporciona. – Ele falava meio sem jeito, por não ter percebido que estava falando como seu personagem.
- Eu sei bem como é – Eu concordava com a cabeça.
E eu realmente sabia.
Ficamos ali conversando por alguns minutos e claro que tomamos uma lata de cerveja só para manter o ritual.
Fui comprar umas coisas no mercado e pagar a minha luz que por incrível que pareça ainda não tinha sido cortada, mesmo sem ser paga a um mês.
A caixa me olhava com todo descrédito pela cena que ela estava presenciando.
Eu, o escritor “famoso”, pagando uma conta atrasada de um mês no dia da virada do ano.
- Melhor tarde do que nunca né – Tentei diminuir aquele semblante embaraçado que a caixa me Jogava com um bom humor forçado.
Ela simplesmente ignorou.
-Felice anno nuovo - Tentei novamente algo cordial.
Novamente ignorado.
As vezes tem dessas coisa na Itália.
Ou talvez meu italiano estivesse muito bizarro.
Eu paguei minha conta de luz, comprei algumas garrafas de vinho e o meu sanduíche que era basicamente minha alimentação padrão.
Como se eu vivesse em uma loja de presunto em um apocalipse zumbi.
Fiquei da sacada da minha sala de frente para o rio Arno minutos antes da queima de fogos olhando o movimento daquelas pessoas enquanto tomava goles do meu vinho.
A cidade toda iluminada, pessoas sorrindo e vozes de todos os tipos.
Enquanto bebericava meu vinho, pensava sobre o meu ano.
Nunca tinha feito uma retrospectiva.
Mas esses últimos mereciam uma atenção especial.
Foi uma mudança não só de países, mas de mentalidade.
Eu abri minha cabeça para muitas coisas.
Diminui um pouco esse meu egoísmo de viver a vida, sem perceber quem está a minha volta.
Milhares de relacionamentos.
Cada um de uma forma, uma coisa completamente diferente da outra.
Isso tudo expandiu minha mente.
Expandiu minha capacidade social.
Foi realmente transformador.
Minha crises de depressão ainda estavam ali.
Aquela velha e sombria amiga que não te abandona.
Mas posso dizer que aos poucos, vou me adaptando e criando a capacidade de ir controlando os efeitos.
É difícil, mas está sendo uma nova experiência.
Sentado ali, já inebriado pelo néctar de Dionísio, eu ia longe na análise da minha vida e nas lembranças do passado.
Sem um passado você não cria um futuro.
E a Itália era exatamente a prova desse meu lema.
Pior conselho que alguém pode dar, é dizer para você esquecer seu passado.
Isso tira sua essência, faz de você algo frágil e sem Fibra.
Oco por dentro.
Uma casca social que se arrasta por ai.
Eu já estive nesse lugar.
E não aconselho a ninguém.
No meio dessas lembranças do passado, lembrei da minha ex namorada que sempre lutou com a depressão.
Tinha um dia do ano que ela se sentia bem.
O dia da virada do ano.
Ela podia vir de uma crise de meses.
Dia 31 de dezembro, ela se afastava da sua fiel nuvem negra e ia fazer o seu ritual.
E voltava renovada, com uma luz que me encantava como nos melhores dias do nosso relacionamento.
O engraçado é que era algo real, as pessoas sentiam essa boa vibração que vinha dela logo depois da virada de ano.
E ninguém desconfiava que ela vinha de talvez 15,20 dias trancada no quarto afundada em depressão.
Resolvi segui seu ritual esse ano.
Já era quase meia noite, eu já estava levemente alcoolizado e dali iria apenas dormir.
Não havia mulheres essa noite, nem grandes loucuras com meus amigos.
Eu já tinha me colocado indisponível para Ari e os outros na semana anterior.
Desci e fui andar com minha garrafa de vinho na mão no meio daquela multidão que esperava os fogos.
O ritual dela era muito simples.
E eu já tinha começado ele sem ao menos perceber.
A primeira coisa era passar um tempo debaixo de um chuveiro ,deixando a agua descer, sem maiores preocupações ou barulhos em volta.
Fiz isso com louvor.
A parte final era passar a virada de ano no meio de muita gente, de preferência em um lugar aberto.
Nada melhor do que na ponte do rio Arno assistindo a queima de fogos com todo aquele monte de gente.
A teoria que ela criou para si, era de que ela acumulava energia negativa.
E sabe se lá porque, nesse momento da virada de um ano para o outro era onde esse acumulo chegava no seu ápice, gerando uma explosão.
Nessas condições, ela conseguiria se desfazer de toda essa energia negativa de uma vez só.
E ela realmente conseguia fazer isso.
Lembro me de pergunta-la se essa energia negativa não podia fazer mal as pessoas em volta.
Ela só dizia que seguindo esse ritual, ela conseguia se desfazer da negatividade e não afetava ninguém.
Eu apenas sorria debochando da fé que ela tinha nesse ritual que ela mesmo havia criado.
Mas no meu interior, eu ficava bastante surpreendido em como isso funcionava.
Em questão de minutos ela parecia outra pessoa, inteira renovada.
10
09
08
Um gole do meu vinho
07
06
Talvez eu não devesse está bebendo álcool nesse ritual, eu pensava por um segundo.
05
04
Foda se
03
Outro gole
02
01
E a cidade era imersa naquelas luzes coloridas e sorrisos enormes.
Eu conseguia ver lágrimas de alegria, sorrisos de esperança e o fascínio das crianças pela aquela simples reação química no céu.
Eu fiquei por alguns segundos que pareceram uma vida, fascinado pela aquele conjunto de reações e energias.
Tinha algo de especial naquele ritual que ela havia deixado para mim.
Eu estava mais leve.
Com toda a certeza do mundo eu podia afirmar isso.
Aquilo me fez bem.
Eu não fiz nenhum tipo de meta para o próximo ano.
A minha vida se limita a uma meta única, viver.
E é se limitando ao ilimitável que você é livre.
Os fogos finalizaram e as ruas cheia continuavam a festa.
Parecia que a noite iria ser longa, mas não para mim.
Estava satisfeito com o resultado do ritual e por esta embevecido com aquilo tudo.
Tinha um último gole do meu vinho, e tomei imaginando se ela estaria fazendo o seu ritual anual.
Voltei para casa, peguei minha máquina de escrever e fui para cama.
Comecei a escrever um conto sobre o ano novo.
Mas eu estava com uma leveza de energia tão grande que combinado com entorpecimento do vinho foram
Um combo eficaz para me levar aos braços de Morfeu.
Na máquina de escrever apenas o título do conto eu consegui terminar.
No fundo da minha garrafa o novo ano parecia diferente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário