quinta-feira, 26 de março de 2020

Dias melhores virão



3 semanas atrás o mundo estava completamente diferente.

Me levantei e fui dar uma volta naquela manhã ensolarada.

Comecei a criar uma rotina de caminhada influenciado pela Italiana Mafiosa, sempre pela área da Piazzale Michelangelo.

Uma parte alta da cidade com uma vista privilegiada do que era a doce Florença.

Ela sempre caminhava por lá próximo ao pôr do sol, que realmente era o momento de uma beleza especial.

Mas também era o momento da infestação de turistas.

Mesmo com o temor do novo vírus e as mortes oficializadas, a parte turística ainda não estava muito afetada.

Eu vinha de uns dias de luto pelo nobre Pato Loco e uma maratona de fuga da Cartomante e da Mafiosa.

Problemas que só mesmo Vigário conseguiria se enfiar.

Então minha caminhada matinais eram bem seguras.

A cartomante antes de sair para o mundo cumpria uma rotina matinal gigante e nunca ia para rua antes de cumpri-la.

A Mafiosa era noturna total, ia dormir ao amanhecer e só ia na Piazzale Michelangelo no final da tarde.

Com essa paz de espírito lá estava eu.

Eu não tentava ser saudável naqueles tempos, mesmo com as influencias saudáveis a minha volta.

Mas quando não acordava de ressaca uma caminhada matinal limpava minha cabeça de alguma forma.

A Piazzale estava com alguns poucos grupos de turistas andando por lá mas nada que me tirasse a tranquilidade daquele momento.

Cada degrau daquela escadaria junto com a respiração certa era uma espécie de nova droga que eu andava experimentando ocasionalmente.

- Vigário?
- Uma voz leve chamava meu nome.

Me virei para ser educado como o habitual e tive uns segundos de espanto.

- Eu não esperava que quando te encontra se novamente teria essa reação tão calorosa. -
Aquela voz falava com seu conhecido semblante blasé.

Eu fiquei sem reação nos primeiros segundos, por que não esperava encontrar em plena
Florença, uma ex de férias se esbarrando em mim em plena caminhada.

Todos os pontos desse acontecimento eram impensáveis tempos atrás.

- Seu circo está na cidade?
- Eu fazia a mesma piada que ela odiava dos velhos tempos.

Ela era Bailarina, e respirava isso.

Eu sempre dizia que ela iria sumir um dia porque teria ido viver a vida no circo com sua arte.

O circo era uma piada relacionada a uma marca famosa, então não faz tanto sentido assim aos mortais de fora dessa relação.

Ela odiava essa piada, porque dizia que aquilo era uma desculpa para eu torcer para ela sumir.

A bailarina sempre foi conhecida na minha roda de amigos como a minha ex blasé.

Ela não fazia questão de fazer a social com ninguém, não demonstrava nada na relação e assim íamos levando.

Eu não sabia quando ela estava incomodada com algo, ou contente com alguma ação.

Ela tinha o mesmo modo de reagir padrão para basicamente tudo.

Eu vi ela chorar uma única vez em um ataque forte de asma e acho que só.

Já vi alguns sorrisos automáticos como se fossem programados para algumas situações.

Na cama era uma dos poucos momentos que ela se abria.

Algo como uma possessão, não parecia ser mais aquela menina de sempre.

Sua verdade era quando ela estava ali dançando ballet.

Ela realmente nasceu para aquilo.

Sua luz mudava quando ela estava praticando sua arte.

Eu conseguia ver sua essência, mas aquilo era muito pouco para um relacionamento.

Um dia me sentei com ela e resolvi que aquilo ali parecia ser mais uma amizade do que qualquer outra coisa.

A reação dela foi a mesma blasé de sempre e fomos cada uma para um lado.

Nunca mais tinha tido notícias dela até esse momento.

Ali no meio daquela beleza de Florença, no cenário mais improvável estávamos conversando de novo.

Ela parecia estar bem diferente.

A sua tão conhecia face blasé estava ali mas ela agora sorria e conseguia demonstrar alegria ao me ver.

- Me mudei faz uma semana para Florença, estou trabalhando em uma empresa aqui.
– Ela ia me explicando sua situação.

Em alguns minutos de conversa ali, ela parecia ser outra pessoa e me convidou para ir bebermos alguma coisa algum dia.

Ela estava a caminho do trabalho no momento do nosso encontro.

Me deu seu endereço e antes de sair me deu um beijo no rosto demorado e suado, daqueles que parecem ser alguma espécie de ritual mágico para te seduzir.

Ela se foi e eu fiquei ali completamente perdido no que pensar.

Parecia mais uma armadilha se montando para me pegar, e eu já tinha duas armadilhas de guerra para me preocupar no momento.

Comecei a sentir calor, cansaço e toda aquela paz da minha manhã parecia estar se dissipando.

Resolvi fazer minha caminhada de volta para casa, porque aquela manhã já tinha perdido o potencial que deveria ter.

Passado 3 semanas, lá estava eu na minha caminhada pela Piazzale Michelangelo de novo.

A cidade já estava mais vazia do turismo, porque os casos tinham aumentado bastante e todo mundo andava apontando o dedo para o país como um lugar infestado do vírus.

Eu cheguei a me encontrar com a bailarina depois para beber , isso gerou um retorno rápido ao passado.

Logico que isso foi uma péssima ideia.

Eu que já tinha problemas suficientes fugindo de duas, acrescentei mais essa na minha bola de neve toxica.

Eu estava chegando ao topo da escadaria ,quando olho para cima e vejo Ari com um semblante sério, encostado em uma pedra me esperando.

- Passei na sua casa e não te achei, imaginei que estava por aqui.
Preciso conversar com você.
Ah, e só para constar, a cartomante estava batendo na sua porta quando passei na sua casa. -
Ari tinha um tom sério quando começou a me atualizar sobre o que estava acontecendo.

-Vigário, as nossas pistas sobre meu irmão estão frias na Itália no momento, e os governos vão fechar as fronteiras.
Vai começar uma quarentena pesada por causa desse vírus e nos próximos dias você vai ver os números de casos crescerem, porque eles vão atualizar o público.
Não acho seguro você ficar aqui no momento.
Eu estou indo ficar de quarentena nas Maldivas, você pode me acompanhar ou eu te mando para onde quiser ir. –
Eu conseguia perceber o peso nas palavras de Ari.

Ari adorava um drama, mas eu via ali que dessa vez era diferente.

Ele tinha conhecimento com a alta cúpula de líderes do mundo, além de ser dono de grandes motores da economia mundial.

Tinha mecanismos de pesquisa em vários braços da ciência, então aquela conversa tinha um efeito de um soco digno do Mike Tyson.

- Me dá um dia, e amanhã embarco de volta para Irlanda, quero passar essa fase por lá.
- Falei reagindo aquela informação.

Sai daquele encontro com Ari desolado.

Na volta para casa, passei para comprar meu sanduíche preferido da cidade, comprei uma garrafa de vinho e fui ao encontro do meu amigo mímico.

Ele foi o primeiro da minha lista a ser informado.

Falei para ele que iria ficar um tempo de volta na Irlanda e que voltaria futuramente.

Aconselhei a ele que se cuidasse em relação a esse vírus, porque as coisas iam piorar.

- Meu amigo quando você voltar ,estarei aqui te aguardando para bebermos uma cerveja gelada, foda se o vírus.
– Ele falava com um sorriso no rosto e me dava um abraço de despedida.

Dali fui ao encontro da bailarina que trabalhava próximo.

Informei as mesmas coisas, e disse para ela que achava uma boa ela se preparar para ir ficar uns dias no Brasil.

Ela deu de ombros, e agradeceu a informação e apenas perguntou se eu voltava.

Estávamos voltando a fase blasé.

Me despedi e ela voltou ao trabalho.

Voltei para casa e fui tomar minha garrafa de vinho.

As duas últimas eu sabia onde encontrar no final da tarde.

Não havia mais relacionamentos, só coisas arrastadas.

Mas mesmo assim eram pessoas que eu me importava nessa fase da Itália.

Depois de terminar minha garrafa de vinho e descansar, lá estava eu novamente a caminho da Piazzale Michelangelo.

No caminho parei em uma loja que era um misto de loja de artigos místicos e estúdio de tatuagem.

A cartomante dava consulta lá duas vezes na semana ,e hoje era dia.

Quando cheguei lá ela parecia incrédula com aquela cena.

- Hoje que terei a honra de jogar para você?
- Ela sorria e se antecipava para pegar seu tarô.

- Vai ficar para uma próxima
– Eu dizia com meu semblante afetado assim como Ari estava antes.

Ela se sentava e ouvia minhas palavras com toda atenção.

E as palavras foram duras para ela.

E ela desabou.

Fiquei abraçado com ela uns 10 minutos enquanto ela chorava.

Dei o contato de John, como já havia feito com o mímico e a bailarina, para que ela entrasse em contato se precisasse de qualquer tipo de ajuda.

A despedida foi pesada, ela era uma ótima pessoa.

- Ainda nos encontraremos em uma fase melhor para os dois ,eu sei ,eu vi nas cartas
. – Ela sussurrava chorando enquanto me dava tchau.

E dali eu tinha a última despedida.

A mais explosiva

A Mafiosa.

Lá estava ela, em frente à estátua de bronze de David com seu gelato sabor pistache de sempre.

O pôr do sol tinha aquele poder de criar um brilho de outro mundo naquele lugar.

E essa luz do sol com aquele longo cabelo loiro e tatuagens coloridas criavam a imagem perfeita.

A mafiosa tinha a bênção da deusa Afrodite, era uma beleza que só o Monte Olimpo podia explicar.

Com certeza a Piazzale Michelangelo era o seu Monte Olimpo.

Como todas ela não era muito normal.

Quando me aproximei ,percebi que ela tinha um cigarro, uma cerveja e seu gelato.

Ela era a rainha da ansiedade e dos exageros.

Quando me viu abriu um sorriso com aquela boca enorme que lhe era peculiar.

Veio correndo me abraçar me enfiando gelato de pistache goela abaixo, seguido de um longo beijo.

Fazia já uns dias que não a via.

Eu tinha cortando qualquer tipo de relacionamento com ela e a cartomante, e tentava seguir meus passos tortos e sem direção sozinho.

Ela tinha aquelas olheiras clarinhas ainda, de quem trocava o dia pela noite, algo que eu adorava nela.

- Você veio me buscar para uma noite louca de sexo selvagem e bebidas?
Normalmente sou eu que vou te buscar.
– Ela me desafiava com aquele tom ácido de sempre.

- Não dessa vez
– Eu falava sentindo novamente aquele tom pesado se aproximando.

E aquele sorriso ia sumindo aos poucos, enquanto ia atualizando a situação a ela.

Ela ouviu tudo com atenção e quando terminou, resolveu se sentar encostada na estátua.

Eu dei o contato do John como tinha feito com os outros.

Ela estava decidida a voltar a Napoli para aguardar o pior com a família.

Ficamos ali conversando enquanto anoitecia bebendo umas cervejas.

A noite vinha cobrindo de negro aquele mar avermelhado que estava o céu.

Era uma cena bonita mas que parecia indicar o que vinha pelos próximos dias.

Nesse dia não se via nenhuma estrela no céu.

O manto negro apagou o céu de Florença.

A mafiosa resolveu que iria comigo para casa.

Mesmo ouvindo que isso ao era uma boa ideia diversas vezes.

- Se isso for a última vez que vou te ver, não vou me perdoar de não terminar o dia com você.
– Ela dizia deixando escapar uma lágrima da qual ela eliminou rapidamente com as mãos.

- A minha vida toda eu fui julgada por ser filha da família Camorra, então hoje falo como uma, e não tem vírus nenhum que vá me derrubar ou derrubar meus amores.
– Com os punhos fechados e dedicação nas palavras ela falava para mim como uma promessa.

Dali fomos terminar a noite na minha casa.

Eu ,A mafiosa e garrafas de cerveja espalhadas pelas cama.

Se esse fosse nosso último dia era assim que ela queria terminar.

Ela tinha toda essa coisa intimidadora do nome da família.

Seu porte de modelo também assustava os homens.

A forma como ela te olhava nos olhos com aqueles olhos azuis era como se te roubasse a alma.
mas ela era um doce.

Que lutava com sua insegurança para se mostrar como a mulher forte que era.

Tivemos a noite selvagem que ela esperava para aquela noite.

Acordei com minha cabeça explodindo, boca seca e aquela rejeição a luz do sol que invadia meu quarto, digna dos filhos de Lestat.

O que era uma sensação que eu era apaixonado e não sentia há algum tempo.

Eu estava sozinho na cama.

No travesseiro dela ,aquele cheiro único, forte e levemente adocicado dela e um bilhete.

O bilhete era pequeno e tinha uma marca de batom como se ela finalizasse com um beijo.

“Quando tudo isso acabar eu vou estar lá de frente para estátua de bronze com seu gelato de pistache te esperando para assistir ao pôr do sol na Piazzale Michelangelo.”

Fiquei ali por alguns minutos olhando aquele bilhete.

Quando ouço alguém bater na minha porta.

- Seu voo é logo mais ,vou te levar no aeroporto. - 
Ari continuava com aquela energia de quem realmente estava sofrendo com tudo aquilo.

Eu já tinha organizado meu apartamento, e ele continuaria alugado por mim, então as garrafas pelo quarto da noite anterior poderiam ficar lá.

Já saindo do apartamento, Ari carregava minha mala e eu levava Filé de peixe no colo, quando encontramos a cartomante.

- Te espero no carro
-  Ari corria para não ficar no meio daquela situação.

A cartomante dava um beijo em Filé de peixe, enquanto fazia lhe carinho.

As duas eram amigas.

Minha gata sempre se deu bem com todas as mulheres que me envolvi.

- Precisava te ver mais uma vez antes de você ir, ainda bem que cheguei a tempo
– Ela dizia enquanto colocava uma pequena pulseira no meu pulso direito com duas pedrinhas, uma rosa e uma roxa.

- Fiz essa pulseira para você lembrar de mim e como proteção nessa fase.
As pedrinhas são Quartzo rosa para o amor e Ametista para maior proteção
. - Ela me explicava que tinha feito na noite passada com os pensamentos mais positivos que podia ter.

E me beijou ali na porta com todo aquele calor da paixão que ela sempre teve.

Logo em seguida, deu novamente um beijo na minha gata e colocou no pescoço dela um cordãozinho bem leve com uma pedrinha vermelha.

Estranhamente ,Filé de peixe que é incomodada por natureza, não se importo e começou a lamber a cartomante como se fosse um agradecimento.

- A pedrinha dela é Agata de fogo, também vai ser bom para proteção de vocês
.- Ela falava já com a voz embargada.

Me deu um último beijo e com as lágrimas descendo, sorriu e se foi.

Me despedi temporariamente da apaixonante Florença e fui de encontro a velha guerreira Limerick.

Em menos de uma semana o mundo estaria um caos.

Faith, Maeve, Elliot e John vieram para Limerick.

Ari estava na Maldivas.

Rudoph continuava na Itália ajudando com a empresa de tecnologia.

E Latini continuava no Brasil usando aquele momento para fazer um carnaval político e se fortalecer politicamente.

Maior parte dos países do mundo tinha milhares de casos e uma contagem de corpos sem controle.

O mundo entrou em quarentena e grande parte dos países faziam toque de recolher para evitar que o vírus se espalhasse.

Nas ruas, caminhões do exército com aquelas sirenes como se uma guerra nuclear estivesse para começar, faziam o alarde para as pessoas não ficassem na rua.

Era assustador.

Nem de perto no meu livro de apocalipse zumbi eu imaginei um cenário como aquele.

Era um cenário injusto, que não te dava nem a chance de lutar.

Mas eu sabia que isso era só uma fase ruim.

O mundo ia passar por essa.

A humanidade depois de todo o caos ia aprender a se unir novamente e se fortalecer.
essa era a esperança que eu tinha.

Ali na minha sala, trancados a mais de 5 dias ,estávamos Eu ,Elliot ,Faith e Maeve jogando baralho e bebendo umas cervejas aguardando até que esse inferno passasse.

O sol entrava tímido pela minha janela, como se fosse injusto dar algum tipo de esperança para nos.

Mas eu continuava repetindo  meu mantra.

Dias melhores virão.

Dias melhores virão.

A quarentena apenas começou.

O mundo se fechou.

Mas dias melhores virão.

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