quinta-feira, 2 de abril de 2020

Do alto da minha sacada





Olhando da minha sacada vejo um novo mundo.

Um novo mundo que é muito parecido com o mundo que construí para mim muito antes do castelo de cartas ruir.

Daqui do alto, na minha visão privilegiada, eu consigo ver como as poucas pessoas que ainda caminham na rua, estão com semblantes pesados e assustados.

Agora existe um distanciamento de corpos.

O que era uma das poucas coisas que restava, já que o distanciamento humano nos outros sentidos já era visível há muito tempo na nova sociedade.

O calor humano com o próximo é inexistente nesse momento


Parece reinar um novo mundo onde a solidão prevalece.

E eu sempre convivi nesse mundo.

Por escolha.

A solidão sempre foi uma válvula que trouxe paz a minha cabeça e alma.

E a negatividade dela era algo que sempre soube lidar.

Lógico, que você sempre sai afetado.

Mas depois de tantos anos a beira de algo de energia tão dúbia, sentia me como Caronte, o barqueiro do submundo, remando nos rios Estige e Aqueronte indiferente aquela situação.

Nesse meu mundo, eu tinha uma grande e belíssima propriedade.

Que a cada dia, por puro capricho eu a enfeitava mais e mais.

Ela era as palavras.

Ali era minha morada.

E ela agora servia de conforto para as pessoas do novo mundo, que vinha usufruir do conforto que ela podia lhes dar.

Isso me assustava um pouco.

Não tinha certeza se existia estrutura para todo eles.

O problema de dividir meu mundo é que tudo que tenho de valor está lá.

E não sei em quem confiar.

Eu não tenho problema em ser um perdedor com um coração abandonado ou um louco
varrido de sorriso descontrolado no meio do caos.

O que tenho de mais valioso na minha propriedade são minhas culpas.

Meus amores  perdidos.

Minha coleção dourada de erros.

Minha paz na solidão.

Tudo isso foi acumulado com muito suor e esforço.

Pode se dizer que combati em guerras violentas como poucas.

Me perdi em culpas que não eram minhas.

Me envenenei no que era apenas mel.

Me sufoquei sem nem ao  menos tentar respirar.

Depois de muito tempo acumulando essas riquezas, eu juntei tudo em um grande baú, como os velhos piratas, e enterrei dentro da minha propriedade.

Fiz um mapa do tesouro apenas para minha memória corroída pelo tempo ser auxiliada.

Mas jamais compartilhei.

Eu nunca tive nenhum tipo de medo ou apreensão que alguém se aproximasse já que sua localização era desconhecida e eu usava de artifícios mágicos para nublar a sua vista.

Um nevoeiro denso sempre estava lá para proteger a visão da minha propriedade.

Por esse motivo, nunca tive nenhuma preocupação.

O problema desse nevoeiro ,que por ser muito denso, também me impossibilitava de ter uma vista a frente da minha fortaleza.

Aqui da minha sacada, eu estava estarrecido com as novas propriedades que vinham sendo criadas a minha volta nesse novo mundo.

Eu olhava tanto para a frente que não consegui ver as escritas no meu muro.

Palavras nos muros da minha fortaleza.

Faziam dela agora, algo compartilhado sem que eu nem percebesse.

Usando das palavras ,de forma bem sincera, uma das minhas culpas que estavam lá enterradas tão bem na minha propriedade, agora estava a mostra.

E isso era aterrorizante.

Ela pegou a minha culpa e dividiu.

Tirando parte daquele peso que eu carregava sozinho, e carregando com ela o que achava ser sua parte.

Sem muitas explicações.

De forma inesperada.

Aquilo foi realmente um alivio, mesmo me deixando apreensivo.

Maior parte da vida nos martirizamos por coisas que não temos o poder de interferir, de mudar.

Isso é sempre uma culpa a mais que carregamos.

Essas culpas fazem mal.

Essas estragam seus outros tesouros se colocados juntos.

Sem contar que vão para seu armário de troféus sendo apenas ouro de tolo.

Se uma borboleta pode bater asas aqui e com isso criar um furacão do outro lado do mundo, uma culpa acumulada de forma errada pode criar terremotos no seu reino.

Seu caráter foi moldado por erros e acertos.

Isso vai jogando um lado da balança pra cima e outro para baixo.

A forma como você lida com eles, é que vai te dar o equilíbrio.

Sempre fui um fã de coisas pendentes.

Porque sempre que encontrava um beco sem saída, achava que não existia fim da linha que me parasse.

Engano de um espírito jovem que já se foi.

Os ciclos precisam ser finalizados.

As pendências resolvidas.

As culpas divididas e assumidas.

Lições tem que ser aprendidas.

Guerras vencidas ou perdidas.

Ódios destilados.

Rancores compreendidos.

Sofrimentos sentidos.

Lágrimas choradas.

Amores deleitados

Risos deliciados.

Evoluções adquiridas.

Empatias equilibradas.

Talvez esse seja o melhor caminho para atingir o famoso nirvana.

A ciência vai te dar meios de crescer.

A psicologia e psicanálise te dará suporte para se estruturar.

Mesmo a fé te fortalecerá de alguma forma psicologicamente.

Mas se a sua essência não se justificar, tudo isso não passará de muletas temporárias, que só vão te salvar de pequenos tombos.

No alto da minha sacada, dentro da minha fortaleza e de frente para o meu baú do tesouro, eu consigo ver minha essência.

E nas palavras, eu tento fazer dela um caminho para que você encontre a sua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário