quarta-feira, 18 de maio de 2022

O homem que deveria ter vivido 900 anos

 




Limerick se encontra no seu padrão de dia habitual.

 

Chuvinha fina, tempo bipolar e aquele ar melancólico como se fosse um aviso de algo.

 

E sempre é.

 

Não tente se encontrar na cronologia dos fatos, eu mesmo não sei em que momento estou.

 

John na minha porta, com aquele olhar pesado e profundo, além da nuvem negra que costuma segui-lo quando ele é portador desse tipo de notícia.

                           

Não era a primeira vez e não seria a última que eu iria passar por essa situação.

 

A melhor pessoa da nossa galera para esse tipo de notícia era John.

 

Não tinha desespero ou exagero, sempre um tom calmo e mesmo assim demonstrava sua profunda tristeza.

 

Eu já esperava esse tipo de notícia nesse momento, fazia parte de um ciclo de acontecimentos que tem me perseguido e que eu venho tentando interromper.

 

Mas nem tudo é sobre nós ou temos poder para interferir.

 

A falta de controle sobre algumas coisas as vezes faz tudo ficar incontrolável.

 

A notícia que John trazia era que um grande amigo nosso dos tempos da faculdade tinha morrido.

 

- “Causas naturais” -  Ele se limitou a dizer.

 

Ele se formou advogado Junto com John e Faith, e trabalhava hoje em dia dando suporte jurídico ao Cassidy.

 

Na época de faculdade ele sempre foi um dos poucos que conseguiu furar a nossa bolha de grupo fechado.

 

Como ele gostava de dizer, também fazia parte daquela Máfia.

 

E sempre fez parte mesmo.

 

Além de ser o melhor amigo de Cassidy e ajudar na adaptação do pobre irlandês no Brasil, ele era sempre uma fonte que o escritório de Faith e John procurava para uma grande tese.

 

John sempre foi um advogado muito técnico, achava brechas em qualquer legislação só focado na tecnicalidade.

 

Faith era uma sedutora por natureza, seus argumentos eram sempre como uma flauta que encantavam os que estivessem ao seu redor ouvindo.

 

Mas o nosso amigo, mais carinhosamente chamado de o Homem de 900 anos, era um misto de tudo isso.

 

Tinha um dom para a oratória como poucos, uma visão estratégia digna de um russo jogando xadrez.

 

Focava na sua aptidão pela a boa lábia, com o poder de te enrolar em segundos.

 

Nasceu e cresceu rodeado da boemia carioca e de toda malandragem que se aprende por lá.

 

Sabia se defender de um golpe, bem como sabia criar os melhores se quisesse.

 

Mas nunca foi sua praia, se fosse não estaria trabalhando com Cassidy, e sim com Latini.

 

Gostava de levar a gente para beber nos botecos da Lapa e Santa Teresa.

 

Se sentia livre lá segundo ele.

 

Sempre foi um cara de manias e trejeitos de um idoso mesmo tendo nossa idade.

 

Usava algumas expressões que fariam meu avô se sentir velho.

 

Era um cara de um papo incrível, com uma serenidade nas palavras e muito amadurecido.

 

O apelido de homem de 900 anos foi criado pela sua caracterização de costume, boina na cabeça, colete no estilo coroa clássico além da experiência de vida que ele demonstrava.

 

Além do seu linguajar diferenciado, do tipo “sacada perspicaz “ e sempre me cumprimentava como “Nobre Vigário”.

 

Gostava de dizer que nós éramos os últimos da velha guarda, por causa do nosso espirito velho e sábio.

 

E talvez fossemos mesmo.

 

O “nobre” amigo participou de várias fases da minha vida, e com certeza bem marcante era o feedback dele para todos as minhas exs namoradas e rolos do passado.

Lembro da primeira vez que ele viu o amor da minha vida.

- Nunca perca essa mulher – Foram as palavras dele.

Algumas outras ele conheceu e sempre decifrou muito bem o que viria pela frente.

Era estranho, mas ele tinha realmente uma boa analise.


Mas nunca deixou de apoiar a minha vida sossegada.


Até porque ele acompanhou de perto a minha vida de cabeça para baixo.

 

Um fato bem interessante da nossa história, aconteceu nos primórdios da faculdade.

 

Nunca fui tão sociável quanto essa época, mas claro sempre acompanhado da nossa máfia.

 

Em algum ponto dessa fase, eu, ele e Faith estávamos um pouco fora de controle com fatores que iam além do álcool.

 

Latini também mas para ele era rotina.

 

Nessa fase nos enfiávamos nas coisas mais malucas possíveis.

 

Uma específica foi em alguma festa difícil de apontar em que momento, mas dentro do campus da faculdade.

 

Existia uns eventos clandestino onde o campus estava fechado e apagado e todos iam para lá para uma festa sem convites.

 

Só iam, quem sabia do dia e horário e era sempre uma insanidade.

 

Apelidamos de Detroit rock city em homenagem a um filme da época.

 

Na festa já completamente bêbado, uma menina loira que já tinha visto andando pela faculdade, sorriu e veio na minha direção.

 

Pegou no meu rosto e colocou uma bala na minha língua e depois me beijou.

 

Eu nem ao menos me toquei que a bala em questão, era a que dava outro tipo de alegria.

 

Faith olhava para mim com um semblante de reprovação apenas.

 

Eu seguia o curso do rio e ignorava qualquer coisa naquele momento.

 

E do mesmo jeito que aquele fato aconteceu, meu cérebro bêbado fez questão de ignorar.

 

Meia hora depois eu continuava ali bebendo, mas meu corpo queimava como eu nunca tinha visto e meu coração parecia que ia explodir.

 

O homem de 900 anos, se aproximou e me proibiu de beber, e me deu uma garrafa de água.

 

Ficou ali a minha volta, alerta para qualquer problema.

 

Não tentou me explicar nada, apenas me obrigava a beber água.

 

- Se você não morrer hoje, não morre mais - Falava sorrindo, mas sempre em alerta.

Aquela noite foi uma loucura.

 

Lembro de quase nada e de acordar no dia seguinte com a sensação de ter quase batido as botas.

 

Mais tarde no dia seguinte, nos encontramos no bar em frente a faculdade e ele me explicou o que tinha acontecido.

 

- A menina te deu um ecstasy inteiro e você engoliu sorrindo, sem nunca ter tomado.
Era a hora de ver se seu coração ia aguentar.
Parece que segurou bem a onda, de ecstasy você não morre mais. 
- Ele gargalhava.

Deixou bem claro que não adiantava me explicar isso na hora porque eu já estava muito bêbado e encantado pela pequena infratora que tinha me drogado.

Achou só prudente me hidratar e deixar o curso natural das coisas tomar conta.

 

Achei aquilo engraçado.

 

Ele era um cara que adorava jogar as coisas para o que ele dizia ser o curso natural das coisas.

 

E John chegava dizendo “Causas naturais”.

 

Parecia uma última piada infame daquele jovem com alma de coroa.

 

Ele fez parte de uma fase bem perigosa da minha vida, da dele e da de Faith.

 

A parte onde usávamos qualquer merda e jogávamos como se fosse uma roleta russa.

 

Como nada demais aconteceu, sempre foi o curso natural da vida o responsável por nos proteger.

 

Olhando hoje é realmente conflitante como éramos tão responsáveis em alguns pontos e tão idiota em outros.

 

Mas ele sempre foi um grande amigo.

 

Leal.

 

Leal para caralho.

 

O cara que abria mão da onda para não deixar o amigo se afogar.

 

Que mesmo depois de Ari e seu império nunca se aproximou por interesse.

 

Tocou a vida dele com tranquilidade como se fosse realmente viver 900 anos.

 

Nesse ponto, o curso natural das coisas nos traiu.

 

Levou ele antes da hora.

 

Poucos farão falta como ele.

 

A ideia por trás de uma amizade de verdade é um processo difícil de descrever, mas é muito fácil de sentir e reconhecer.

 

E mesmo ele não vivendo os seus 900 anos, seu legado vai ser levado com o nosso grupo de amigos de sempre e para sempre.

 

Mesmo que tenhamos que mudar o curso natural das coisas na porrada.


Nenhum comentário:

Postar um comentário