quinta-feira, 23 de abril de 2020

Diário de quarentena: Volume 1






De volta a cinzenta Limerick, que sorria para mim com seus raros raios solares como uma espécie de bem-vindo de volta.

Todo o caos do mundo era real, e em Limerick não seria diferente.

O País também estava de quarentena, que impossibilitava a população de saídas diárias para rua sem ser algo essencial.

Eu estava bem preparado no meu apartamento para enfrentar essa quarentena.

Na verdade, podia dizer que estava preparado no meu prédio todo.

Ari havia contratado uma empresa para higienizar e desinfectar todo o prédio.

Também abasteceu os 3 apartamentos com comidas e bebidas, que mais parecia uma preparação de bunker de guerra.

O apartamento do terceiro andar, que estava vago, agora estava preenchido por John, a turca do ácido e Lúcifer.

No meu apartamento agora morava Eu, Faith, Maeve e Elliot, além de Filé de peixe e Bacon.

E assim ia ser esses tempos de quarentena.

Não havia previsão de quando o mundo voltaria ao normal.

Se é que ele voltaria ao que conhecíamos como normal.

O pouco tempo que aquelas notícias pelo mundo se espalhavam, já se conseguia ver como afetavam a sociedade.

As pessoas estavam começando aos poucos a ter consciência de como tudo ia mudar.

Nos primeiros dias em casa, estávamos todos consumindo muito dessa crise.

Eu conseguia percebe um clima horrível de ansiedade pela casa.

A televisão da sala só tinha uma finalidade.

Ficava ligada o dia todo no canal de notícias, com aquela rajada de notícias ruins e outras piores.

Demorei uns cinco dias para tomar uma atitude.

Levantei um dia e vi Maeve com um olhar desolado ao ver um gráfico com aumentos de casos.

Peguei uma cerveja na geladeira, respirei fundo, dei um gole e fui em direção a tv.

Desliguei na tomada e abracei a tv no colo, com Maeve me olhando confusa.

Me aproximei da janela e joguei a tv na rua.

Maeve estava em choque com aquela cena.

Agora eu cooperava mais para um cenário apocalíptico dos meus livros.

Ruas vazias, uma televisão destruída no meio da rua, só faltavam os carros abandonados e os jornais voando.

Peguei outra cerveja e dei a ela.

- Aquela merda estava te fazendo mal. – Justificava.

Ela me olhou com os olhos marejados e me deu um longo abraço do que parecia ser um agradecimento e alivio.

Nossa rotina era sossegada.

Elliot era quem gostava de cozinhar para todos.

Maeve no começo estava mais reservada no seu quarto.

Faith era sem sombra de dúvida a que mais precisava se comunicar.

Às vezes eu acordava com ela sentada à beira da minha cama puxando conversa.

O que era uma forma menos impactante de ser acordado, do que lambido por Bacon, que adorava ir para minha cama de manhã.

Faith tinha tanta energia para ser jogada para fora em forma de fala, que ela andava pelo prédio interagindo com os moradores do nosso complexo prisional, como chamávamos.

Quando ela não estava me acordando, perturbando as receitas de Elliot, fofocando com Maeve, ela ia atrás de John e a turca e outras vezes estava com as irmãs holandesas.

Ela com certeza era a mais afetada pela aquela situação de quarentena.

Eu no começo tentei escrever mais.

Porem minha escrita estava contaminada pela aquela negatividade que eu tinha sido mergulhado.

Então parei.

Minha rotina era beber e interagir com os 3 animais que ficavam o dia todo andando por todo o prédio.

Nós tínhamos uma área social atrás do prédio.

Uma espécie de quintal, e eu ficava ali aproveitando um sol sempre com um deles.

Lúcifer era o que mais me acompanhava.

Ficava ali com aquele olhar caído e aquele semblante cansado que ele tinha, sempre próximo o suficiente para sempre estar me babando.

Filé de peixe estava em um caso de amor com minhas vizinhas holandesas.

Ela aparecia ocasionalmente para me dar uma lambida e se esticar no quintal um tempo no sol, depois sumia para lá.

Bacon era preguiçoso.

Descer as escadas para ir ao quintal era uma tortura para ele.

Então quando eu começava a me preparar para descer, ele se enrolava pelas minhas pernas implorando para que eu levasse ele no colo.

Já no quintal, ai sim, ele aproveitava como uma criança com um brinquedo novo.

Quando íamos voltar para o apartamento, era a mesma cena.

Lá ia eu carregar aquele mini porco, que de mini não tinha nada.

Elliot era o que melhor parecia lidar com toda aquela nova fase perturbadora.

Estava sempre com um sorriso.

Passava horas fazendo novas receitas.

Tinha virado seu novo passatempo e ele cozinhava bem.

Sempre tinha alguma atividade para reunir todos e dar uma aliviada no ambiente.

Foi ele o responsável por tirar Maeve daquela escuridão que ela se encontrava nos primeiros dias.

Em compensação, toda essa energia tinha uma explicação.

Elliot estava mais adicto do que nunca em doces.

Passava o dia todo se entupindo de qualquer coisa que levava açúcar.

Um dia eu estava na sala conversando com ele, quando ele decidiu que precisava me mostrar uma receita com cerveja que ele tinha aprendido.

Quando chegamos na bancada da cozinha, eu vi que tinhas 5 carreiras de pó branco, dando a ideia de cocaína.

Mas o pó era visivelmente diferente.

Faith estava na cozinha fazendo um chá, quando viu nossas caras de espanto.

- Montei umas carreiras para Elliot, a taxa de açúcar do dia dele está baixa hoje. - Ela ria apontando para as linhas feitas de açúcar.

Faith tinha um humor ácido sofisticado e esquisito.

Maeve era um caso à parte na casa nos primeiros dias.

Começou a quarentena bem baixo astral.

Estava apavorada consumindo tudo que ela podia de aterrorizante dos noticiários, até o momento que joguei a tv fora.

Aquilo foi um divisor de águas na casa.

Ela começou realmente a se reerguer dali.

Começou a fazer seus exercícios de yoga diários e voltava a sorrir com sua leveza natural.

Eu lidava com aquela quarentena como o anfitrião que tinha que ser forte.

Continuava minha rotina alcoólica, agora um pouco mais potencializada.

Quando Faith sentava para beber comigo até o amanhecer, era como se o mundo tivesse acabado lá fora.

Caia os dois na sala e só íamos acordar no dia seguinte com Bacon e Lúcifer lambendo nossas bocas.

Em vez em quando fazíamos noite de jogatina.

Carteado, jogos de tabuleiro e às vezes até mesmo vídeo games, que era mais a praia de Elliot.

Faith era disparada a mais competitiva.

A noite de carteado se resumia a disputa em duplas no geral, e ela era minha dupla.

Maeve e Elliot, John e a turca e as irmãs holandesas.

A turca e a irmã holandesa mais nova, eram do tipo carne de pescoço também.

Então era como seu eu estivesse nas trincheiras escondido assistindo à Segunda Guerra Mundial.

A diferença é que todas elas pareciam fazer parte do exército alemão.

As noites de pôquer também eram bem tensas.

Sempre fui bom com cartas, principalmente em jogos individuais como pôquer.

Porem ali, eu sempre era um dos primeiros a bater, entregando meus pontos.

As meninas tinham um espírito muito competitivo para mim.

Umas dessas noites eu já estava decidido a abandonar o jogo e deixar que as três se decidissem na mesa, quando foi se montando um cenário inimaginável de um Royal Flush.

Resolvi ver se aquilo se concretizava.

Esse tipo de jogada você jamais nega de tentar, tipo te alimenta como tesão a cada rodada.

Eu começava a aumentar a aposta.

Faith sempre teve uma certeza que ela conseguia me ler.

E ela sabia que eu blefava mesmo com um 5 e um 2 na mão.

Ela só não sabia identificar ao certo quando eu blefava, ela achava que sabia.

E resolveu me seguir no aumento das apostas

John corria da rodada, seguido por Elliot.

A irmã holandesa mais velha pagava qualquer rodada, mesmo sem nada.

Era uma espécie de kamikaze, nunca consegui entender a lógica do jogo dela, o que às vezes era confuso para o meu jogo.

A turca e irmã holandesa mais nova vendo aquela mesa composta comigo e Faith aumentando as apostas, não perderam tempo colocando suas apostas também.

Você podia ver os olhares na mesa como aquela mão seria um troféu.

As três estavam ignorando minha presença na rodada, era uma guerra particular entre elas tão grande que elas não conseguiam olha para o lado.

Eu precisava de uma carta, um rei de copas.

As probabilidades estavam contra mim.

Mas eu não me importava.

A última carta veio para a mesa, naquele movimento em câmera lenta.

Um rei de copas.

Se eu fosse seguir probabilidades na minha vida, eu estava fudido.

Eu começava a rodada, e resolvi não aumentar o pote.

Aquilo foi como se eu tivesse uma mensagem subliminar para que elas fossem all in.

E foi exatamente o que aconteceu.

A mesa toda pagando all in.

As cartas foram sendo mostradas uma a uma.

Eu dei um gole na minha cerveja e montei aquele Royal Flush de copas tão perfeito digno de um agente secreto de respeito.

E houve um silêncio por segundos, como se o tempo se rompesse.

Elas não esperavam.

Elas sequer lembravam que eu estava no jogo e que eu tinha começado a cavar aquele buraco do qual elas caiam agora.

Faith me olhava com uma indignação, do tipo de quem tinha sido enganada covardemente.

- Desculpe meninas, mas vocês que tiveram a brilhante ideia de all in.
Parece que agora teremos que jogar strip pôquer, já que ninguém tem mais o que apostar. – Eu usava do meu deboche habitual.

Aquela noite foi engraçada.

Resolvemos queimar uma carne no quintal um dia.

Estávamos em oito pessoas completamente isoladas há mais de quinze dias no prédio, sem contato com o mundo lá fora.

O sol brilhava, o clima era realmente gostoso de se apreciar.

A minha gata estava esticada na grama, com o cachorro de John e o porco de Elliot.

Eles tinham um tipo de parceria engraçada de ver.

Esse dia foi um alívio mental necessário.

Ficamos lá sentados conversando, comendo e bebendo até a madrugada.

No meio dessa conversa, falando sobre planos, decidimos fazer uma lista de coisas a se fazer quando o mundo voltasse ao normal.

Se tem uma coisa que vai ser uma lição para muitos, é como dar valor a coisas simples como ir na rua comprar pão.

A lista seria um exercício para se fazer aos poucos, mas decidimos escolher o primeiro item ali.

Elliot começou.

- Não sei exatamente onde começar, mas vou fazer um mochilão pelo mundo.
Essa falta de liberdade me mostrou que preciso abrir minha cabeça para o mundo para ontem. – Elliot falava com sua seriedade de sempre.

Maeve seguia nessa base.

- Eu vou fazer o caminho de Santiago de Compostela.
Preciso desse tipo de peregrinação depois de tudo isso.

A turca sorria antes da sua escolha.

- Todo brasileiro que conheço me pergunta sobre os balões da Capadócia, e eu nunca nem tive ideia que esse tipo de turismo era famoso lá.
Então vou andar de balão na Capadócia.

Faith era direta.

- Vou comprar uma moto.
Eu não quero nunca mais viver algo parecido a essa falta de liberdade atual.
E dirigindo minha moto por aí, sei que vai ser minha alimentação diária de liberdade.-  Ela falava com seus olhos brilhando.

A irmã holandesa mais nova estava determinada a virar uma profissional do pôquer e fazer a limpa nos cassinos em Las Vegas.

- Nunca mais você vai ter a audácia de colocar mais que um par na mesa comigo Vigário. – Ela me ameaçava gargalhando.

A irmã holandesa mais velha ficou uns segundos refletindo sobre o que faria primeiro.

- Sempre quis ter uma banda de Rock.
Acho que depois dessa fase, eu terei o incentivo necessário para tirar minha guitarra da caixa.

John estava em silêncio, olhando para mim como se precisasse confessar algo.

- Então, quando tudo isso acabar, eu já tenho tudo planejado para esse meu primeiro item.
E esse talvez seja um bom momento para contar sobre.
Eu e a turca vamos nos casar. - John acompanhava as reações.

Faith deu um grito de alegria e pulou abraçando John, que estava completamente constrangido.

Todos foram cumprimentar o casal pela novidade.

Eu peguei outra cerveja e fiz um brinde a eles.

Aquela era uma ótima notícia.

Uma luz naquela escuridão atual.

A turca era querida por todos nós e uma ótima pessoa.

E John merecia alguém que valesse a pena.

Ficamos ali bebendo e se divertindo com aquela notícia.

- Vigário e o seu primeiro item da lista, você não falou – Maeve perguntava.

- Depois do item de John não tem mais como competir.
Mas a minha primeira providência vai ser ir comprar uma pá.
Sempre quis uma pá na minha casa que eu tivesse comprado.
Um rito de maturidade que eu ainda não cumpri.

Eu realmente tinha esse desejo há muitos anos, mas nunca vi necessidade de cumpri-lo.

Agora tinha virado tipo uma lista de coisas a se fazer antes de morrer.

Aproveita e leva no meu casamento para me ajudar a abrir minha cova – John falava gargalhando e levando um soco no braço da turca.

E todos caiam na gargalhada.

Faith subiu no apartamento e voltou com seu notebook.

- Tem mais três pessoas querendo participar da nossa reunião.
Eu autorizei. – Ela falava abrindo o seu notebook e digitando algo.

Ficou todo mundo se olhando confuso com aquela informação.

Até que surge uma voz difícil de não reconhecer.

- Abandonei uma votação de lei muito importante para saber qual seria a novidade -  Latini aparecia em uma tela no notebook sorrindo e com uma garrafa de uísque em uma das salas oficiais do Planalto Federal.

Nunca houve limites para Latini.

Em uma das duas telas restantes aparecia Ari deitado em uma rede com uma praia maravilhosa atrás e um drink colorido desses tropicais na mão.

E na outra tela, Rudolph com um charuto e um copo de conhaque em uma espécie de escritório.

- Eu saio daí e aparece novidades?
Façam o favor de me atualizar. – Ari cobrava dos amigos ali reunidos.

O silêncio era rompido por John e sua notícia bombástica.

- Puta que pariu, o que vocês aprendem na faculdade de Direito?
Advogado que casa é tipo traficante que cheira. – Latini não perdia a chance de fazer seus comentários de humor duvidoso.

Ari abria um grande sorriso com a notícia.

- Faço questão de bancar qualquer tipo de excentricidades que vocês queiram para esse casamento.
Tem que ser um dia diferenciado.

Em seguida, Ari chamava por Faith.

- Faith, aproveite que você tem um tempo para pensar, e essa pode ser a data do nosso casamento também – Ele finalizava sorrindo com aquela proposta no ar.

Faith estava completamente desconcertada e vermelha.

Os comentários em apoio a Ari, para complementar, faziam ela nem conseguir falar.

Só sorria sem graça para Ari.

E Ari com seu sorriso cínico na tela se divertia com aquela situação.

E com aquele clima leve e descontraído foi como continuamos nosso dia.

A quarentena é uma luta diária para manter se limpo da negatividade.

Você já começa mergulhado em toda ansiedade e sentimentos negativos possíveis.

Mas você tem que lutar para não entregar os pontos no final do dia.

Nunca é tarde para começar a desistir.

E dessa vez a desistência vai ser a melhor coisa que você pode optar.

Um presente dessa fase difícil.

Desistir da sua antiga vida.

Se renovar e começar algo completamente diferente e novo.

Assim como John, encontrar na escuridão a luz que vai te guiar para fora dali.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O jovem amor cigano





Ainda na época da Irlanda.

Estava ali parado sem nenhuma noção do que estava fazendo.

Aguardando alguém que eu nem sabia as formas do rosto.

Parado em um terminal de desembarque do aeroporto.

Raramente John me pedia algo que não fosse para o meu próprio bem.

Era sempre focado em minha vida, poucas vezes era algo para ele.

Então mesmo sem  muita paciência, aceitei seu pedido de ajuda.

John tinha o péssimo habito de criar histórias para tentar me convencer a algo.

Uma compulsão que advogados adquirem com o decorrer da faculdade.

E eu tinha um movimento automático de acreditar.

Pois bem, John me pediu para ir ao aeroporto busca alguém que tinha novas pistas sobre a nossa investigação.

- É algo delicado, então preciso de alguém de confiança lá.
Eu estarei em um compromisso que não posso desmarcar
– falava em tom de seriedade.

John estava estranho já algum tempo, tanto que pela primeira vez não foi acompanhar Ari em uma viagem.

Ari por sua vez ia passar um tempo na Itália ,onde encontraria Rudolph e tentariam avançar em uma pista.

Parecia tudo uma grande armadilha para urso, e eu era o urso sonolento passando naquele momento.

Estava lá de frente para aquele enorme terminal esperando por algum burocrata com documentos formais que de nada ajudariam na nossa busca.

De repente vejo aquela cena surreal.

Elliot com seu gigantesco sorriso metálico no rosto mastigando algo que parecia um alcaçuz vermelho como um canudo.

Pessoas com aparelhos no dentes deviam ser proibidas de consumir o tanto de açúcar que Elliot consumia.

Mas a cena ainda tinha a cereja do bolo.

Ele segurava a coleira com Bacon, que usava um chapéu e sapatinhos.

Bacon era seu porco de estimação que segundo ele, era de uma raça que não crescia.

Sempre que nos encontrávamos, Bacon estava mais esticado e gordo, só Elliot não percebia.
Na outra mão uma placa “ Bem-vindo Vigário”.

-Talvez você tenha vindo de uma viagem de ácido, mas quem está chegando é você Elliot. – Falei antes do abraço de boas-vindas.
- A placa de bem-vindo, foi ordens dela, para te dar as boas-vindas ao mundo dela – Elliot falava sorrindo como se toda aquela informação fizesse sentido.

Antes que eu tivesse tempo de perguntar o que significava aquela cena sem sentido, duas mãos tamparam meus olhos por trás.

Ficou aquele silencio, como na brincadeira de criança que você tem que descobrir quem é.

Eu sempre chutava minha vó.

- Eu sempre arrisco que é minha vó, mas esse cheiro é como uma identidade para mim.
Faith
– falei matando a charada.

Ela tirava as mãos e com um grande sorriso no rosto e uma surpresa no colo.

Filé de peixe ali me encarando com aqueles olhos de quem dizia “Não adianta fugir de mim seu filho da puta”.

Peguei minha gata no colo e ela parecia um pouco magoada comigo nos primeiros segundos.

Logo em seguida me deu duas lambidas e uma cabeçada.

Aquele era seu sinal de aprovação novamente.

Quando percebi Bacon estava se roçando nas minhas pernas como sinal do que parecia ser saudade.

Não faltava mais nada nesse hospício.

-Como está sua vida sem seu braço direito?
É o amor Vigário, sempre afasta os amigos.
– Faith falava sobre algo que eu não tinha ideia.

Ela percebeu minha cara de surpresa e ficou mais surpresa ainda.

-Você não sabia do John?
Ele está namorando a turca que trabalha com você.
A turca do dia do ácido.
– Ela falava e se divertia com toda aquela informação sendo processada por mim.

- Filho da puta – foi a minha reação.

John era o mais reservado de todos nós, diria até meio misterioso.

Ele tinha como praxe nos seus relacionamentos, manter o mais fechado e reservado possível.

Até um momento onde ele se sentia confortável com a relação e não era mais aquela coisa de começo de relacionamento.

-Depois que voltei para o Brasil, continuei conversando com ela.
Hoje é o aniversário dela e eles iam viajar, talvez ele ainda não esteja na fase que ele se sente confortável a falar sobre.
– Faith explicava como tinha toda essa informação.

Faith com um sorriso diferente aproveitava para comunicar que tinha terminado com o babaca da balada, que segundo ela era só mais um babaca mentiroso.

E que a partir de hoje o mundo era da nova trinca, como ela mesmo intitulou.

Todos nós, Faith, Elliot e eu, solteiros e pelo mundo, palavras dela.

-Para onde vamos primeiro? – Faith perguntava completamente excitada.

E eu com aquele ar cansado e entediado não teria muita escapatória.

-Elliot escolhe, afinal é sua primeira vez aqui – Falei achando que Elliot poderia ser uma escolha mais moderada.

Ele concordou com a cabeça e disse que nos explicaria uma pesquisa que ele andava fazendo antes de chegar.

Fomos para casa com o combinado de arrumar as coisas, alimentar os animais e pensar nesse próximo roteiro.

Faith estava bastante empolgada com o que ela chamava de “os mais loucos dias das nossas vidas”.

Elliot apenas sorria como se não tivesse preocupação com nada.

E eu estava ali com um misto de cansaço e receio com esses “dias loucos” que viriam.

Faith é maravilhosamente doce, linda e centrada, mas ela tem umas fases onde gosta de viver a vida como um trem desgovernado.

E na sua concepção ,eu sempre sou a melhor companhia para essa fase.

Subindo as escadas para o meu apartamento, encontramos com minhas vizinhas holandesas.

Faith e as meninas se abraçaram, felizes por se reencontrar.

Eu apresentei Elliot, que estava completamente congelado em uma espécie de transe.

Pobre jovem, foi flechado pelas minhas vizinhas.

Ele com muito esforço conseguiu falar um oi.

A mais nova parecia ser a responsável pela bela pontaria.

Enquanto ela estava ali abaixada brincando com Bacon, a mais velha estava apaixonada trocando carinhos com Filé de peixe no meu colo.

Que como sempre se mostrava muito social a pessoas desconhecidas.

Depois de uma conversa rápida e louca ,como de costume, perguntei se elas poderiam ficar com Filé de peixe uns dias por causa da viagem.

A irmã mais velha com um sorriso enorme concordou, como se fosse a melhor notícia do seu dia.

Bacon ,eu já sabia que ia viajar junto ,porque Elliot ficou 1 ano organizando documentos para entrar com ele pelo mundo.

Além disso ,Elliot ia para cima e para baixo com Bacon.

Eu já estava acostumado, já que Lúcifer, o Bulldog de John costumava viajar com o grupo.

Chegando ao meu apartamento, sentamos para ouvir o que Elliot tinha em mente.

- Vamos para País de Gales, em uma cidade chamada Holyhead.
Já tenho tudo planejado.
Nós vamos a uma espécie de parque de diversões com circo itinerante, daqueles que chegavam nas cidades antigamente, só que esse é todo controlado por uma família cigana romena tradicional. –
Ele explicava todo seu planejamento feito metodicamente.

Alugamos um carro e fomos dirigindo até o porto de Dublin, onde pegaríamos uma espécie de balsa.

Faith fez questão de ir dirigindo, e aquilo parecia demonstrar que realmente não seria uma viagem comum.

Faith era do tipo motorista de F1.

Raramente estava abaixo de 100 km por hora.

A viagem na balsa era mais ou menos umas 3 horas.

Chegamos a cidade, fomos a uma casa pequena que eles tinham alugado.

A noite, bebemos umas cervejas em casa e fomos ao tão esperado parque de Elliot.

Eu ainda não tinha entendido bem a escolha, parecia ser tudo meio exótico pra mim, porem eu estava ali para essa experiência.

Chegando lá, tinha todo aquele ar de parques de cidade pequena dos filmes.

Alguns brinquedos padrões como carrossel, barracas de comidas e doces, maquinas de disputa de força e jogos de sorte.

O parque estava bem cheio e eu conseguia ver o quão particular os funcionários eram.

Era uma comunidade cigana vinda da Romênia ,que viajavam por ai com sua estrutura.

Elliot estava fascinado andando pelo parque, enquanto eu e Faith parávamos em uma barraca para comer Goulash e beber cerveja preta.

Conseguíamos ver Elliot de longe, porque Bacon era uma atração à parte naquele lugar.

Todos queriam fazer carinho e tirar foto com ele.

Depois de algum tempo eu e Faith já estávamos alcoolizados e Faith me aporrinhava para ganhar um urso para ela na barraca de tiro ao alvo.

A arma atirava rolhas e parecia estar levemente alterada para te atrapalhar na missão.

A menina da barraca que era responsável, era uma loirinha muito tranquila, de sotaque bem diferente e que estava ali descalça.

Eu já tinha tentado 3 vezes e nada.

Faith não queria tentar porque sempre quis ganhar um urso desses no parque.


Eu já estava bêbado, gastando todo meu dinheiro, e a cigana ali na frente se divertia com nossa derrota.

Elliot chegou com um algodão doce enorme rosa, com uma felicidade que não via há tempos.

Ele realmente estava se divertindo.

Bacon com a sua falta de noção padrão, chegou invadindo a barraca e trombava em tudo com seu tamanho não percebido.

Eu estava exatamente no terceiro tiro, com dois acertos, depois de várias tentativas, quando Bacon entrou.

O jogo para ganhar o urso gigante, se resumia em três tiros e três acertos

No terceiro tiro a arma sempre perdia a pressão para te atrapalhar na vitória.

Bacon entrou causando e esbarrou na prateleira de madeira, nesse momento resolvi atirar.

O tiro foi certeiro na placa que simbolizava um pato amarelo, que era o alvo.

Mas como a arma perdia a pressão, a rolha bateu sem nenhum poder de derrubá-la.

Porem no esbarrar de bacon ,esse mesmo alvo resolveu cair.

- BOOM, o urso é nosso – Eu falava com o meu sorriso mais cínico para a cigana.

Em um primeiro momento ,eu vi no semblante dela que aquele tiro seria anulado, e ela não aceitaria a nossa vitória suada.

Mas Bacon continuava lá, fazendo sua bagunça de uma forma que a cigana o achasse fofo.

E claro, jogando na balança o tanto de libra esterlina que eu já tinha dado a ela, a situação embaraçosa com bacon e o olhar choroso e pedinte de Faith ,ela resolveu reconhecer aquele nosso merecimento.

Ela pegou o maior urso da barraca e entregou aos braços de Faith.

Era realmente enorme.

O urso era branco, com um moicano verde e tinha mais de 1 metro.

Faith parecia uma criança que ganhou o seu mais esperado presente, com olhos marejados.

Vale lembrar, que ela já era um misto de emoções infantis e cerveja preta  acumulada.

Eu e Faith saímos dali com a nossa conquista, antes que algum cigano mais velho aparecesse para anular aquela merecida vitória.

Elliot estava com aquele mesmo olhar que ele tinha ao conhecer minha vizinha.

E ficou por lá conversando com a cigana, enquanto Bacon, continuava causando dentro da barraca, mas agora com autorização e liberação total da mesma, já que ele tinha atraído mais pessoas para a barraca.

Eu e Faith voltamos para nossa  parte preferida do parque.

A barraca de Goulash e cerveja preta.

Horas passaram e lá estávamos nos sendo convidados a ser retirar da barraca.

Basicamente todo o parque já estava fechado quando recebemos esse convite de uma cigana mais velha que sorria ao ver seu lucros com esses dois sem limites.

Até porque saímos de lá com uma sacola com mais Goulash e cervejas pretas.

Quando saímos da barraca ,vimos Elliot vindo em nossa direção.

Ele vinha com bacon dormindo no colo, e com a cigana ao lado com vários algodões doces e seus pés descalços de sempre.

Fomos até a saída do parque, ela entregou os algodões doces para nós e ficou com um.

Elliot havia comprado para todos.

Nos despedimos, e fomos saindo, e nessa percebemos aquela cena que não esperávamos.

Elliot e a cigana se beijaram se despedindo.

Aquela cena realmente me impressionou.

Parecia que estava vendo um filho crescendo.

Mas ao mesmo tempo, sabia o filho que tinha, e que ainda precisava de uns pequenos empurrões.

- Compramos Goulash e cerveja preta suficiente para uma grande família, porque você não se junta a nós?
– Eu perguntava surpreendendo a jovem cigana.

Faith me dava um soco no braço com uma piscada de olho, aprovando minha ação.

Elliot estava congelado, mas no fundo do seu olhar perdido eu conseguia ver sua aprovação.

Ele apenas repetia o convite com aquele gaguejar nervoso.

Ela nos pediu uns minutos para avisar no parque e nos seguiu para a nossa social inesperada.

Ficamos la na mesa de casa mergulhados no Goulash e cerveja preta, ouvindo as histórias que ela tinha para contar da sua vida cigana.

Ela contava como era sua vida seguindo, aquele parque itinerante que era da sua família por três gerações.

Ela falava a língua cigana que ela chamava de romani, além de romeno que era sua origem e inglês porque desenvolveu por causa do trabalho itinerante pela Europa.

Ela explicava com naturalidade coisas como sempre andar descalça, e aquilo era realmente muito enriquecedor.

Eu e Faith já tínhamos bebido e comido o suficiente, e fomos nos despedimos bem cedo, deixamos os dois lá naquele clima romântico.

No dia seguinte, acordei com a cabeça explodindo.

A cigana já tinha se despedido, e Elliot estava lá na mesa tomando café com um misto de emoções.

-Já estamos prontos, só você dizer quando podemos ir.
Faith está no carro arrumando a coisas. –
Elliot me atualizava dos próximos passos.

Nos iríamos de carro para capital de Gales, a cidade de Cardiff.

Peguei minhas coisas e uma garrafa de agua para sobreviver aquela viagem.

Chegando no carro era realmente algo digno de um hospícios.

Faith sorrindo ,Elliot meio triste pela despedida da cigana e Bacon andando de um lado para o outro.

O carro ainda tinha um monte de algodões doce e um urso gigante, que Faith não queria colocar no porta mala.

Era visualmente perturbador aquele ambiente.

Faith gargalhava, aumentando o som no rádio e acelerando o carro, com o pé que parecia ter toneladas de tão pesado.

-Se a polícia nos parar eu vou dizer que fui sequestrado por vocês.
Eu jamais vou admitir para alguém que entrei aqui por vontade própria
. - Eu demonstrava meu mau humor matinal.

Faith apenas sorria e continuava.

Elliot depois de um tempo dormia com bacon no seu colo.

Ambos com o que parecia ser um sorriso.

E aquilo foi o suficiente para ir diminuindo meu mau humor e me colocando de volta naquela aventura.

Próxima parada, Cardiff.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Do alto da minha sacada





Olhando da minha sacada vejo um novo mundo.

Um novo mundo que é muito parecido com o mundo que construí para mim muito antes do castelo de cartas ruir.

Daqui do alto, na minha visão privilegiada, eu consigo ver como as poucas pessoas que ainda caminham na rua, estão com semblantes pesados e assustados.

Agora existe um distanciamento de corpos.

O que era uma das poucas coisas que restava, já que o distanciamento humano nos outros sentidos já era visível há muito tempo na nova sociedade.

O calor humano com o próximo é inexistente nesse momento


Parece reinar um novo mundo onde a solidão prevalece.

E eu sempre convivi nesse mundo.

Por escolha.

A solidão sempre foi uma válvula que trouxe paz a minha cabeça e alma.

E a negatividade dela era algo que sempre soube lidar.

Lógico, que você sempre sai afetado.

Mas depois de tantos anos a beira de algo de energia tão dúbia, sentia me como Caronte, o barqueiro do submundo, remando nos rios Estige e Aqueronte indiferente aquela situação.

Nesse meu mundo, eu tinha uma grande e belíssima propriedade.

Que a cada dia, por puro capricho eu a enfeitava mais e mais.

Ela era as palavras.

Ali era minha morada.

E ela agora servia de conforto para as pessoas do novo mundo, que vinha usufruir do conforto que ela podia lhes dar.

Isso me assustava um pouco.

Não tinha certeza se existia estrutura para todo eles.

O problema de dividir meu mundo é que tudo que tenho de valor está lá.

E não sei em quem confiar.

Eu não tenho problema em ser um perdedor com um coração abandonado ou um louco
varrido de sorriso descontrolado no meio do caos.

O que tenho de mais valioso na minha propriedade são minhas culpas.

Meus amores  perdidos.

Minha coleção dourada de erros.

Minha paz na solidão.

Tudo isso foi acumulado com muito suor e esforço.

Pode se dizer que combati em guerras violentas como poucas.

Me perdi em culpas que não eram minhas.

Me envenenei no que era apenas mel.

Me sufoquei sem nem ao  menos tentar respirar.

Depois de muito tempo acumulando essas riquezas, eu juntei tudo em um grande baú, como os velhos piratas, e enterrei dentro da minha propriedade.

Fiz um mapa do tesouro apenas para minha memória corroída pelo tempo ser auxiliada.

Mas jamais compartilhei.

Eu nunca tive nenhum tipo de medo ou apreensão que alguém se aproximasse já que sua localização era desconhecida e eu usava de artifícios mágicos para nublar a sua vista.

Um nevoeiro denso sempre estava lá para proteger a visão da minha propriedade.

Por esse motivo, nunca tive nenhuma preocupação.

O problema desse nevoeiro ,que por ser muito denso, também me impossibilitava de ter uma vista a frente da minha fortaleza.

Aqui da minha sacada, eu estava estarrecido com as novas propriedades que vinham sendo criadas a minha volta nesse novo mundo.

Eu olhava tanto para a frente que não consegui ver as escritas no meu muro.

Palavras nos muros da minha fortaleza.

Faziam dela agora, algo compartilhado sem que eu nem percebesse.

Usando das palavras ,de forma bem sincera, uma das minhas culpas que estavam lá enterradas tão bem na minha propriedade, agora estava a mostra.

E isso era aterrorizante.

Ela pegou a minha culpa e dividiu.

Tirando parte daquele peso que eu carregava sozinho, e carregando com ela o que achava ser sua parte.

Sem muitas explicações.

De forma inesperada.

Aquilo foi realmente um alivio, mesmo me deixando apreensivo.

Maior parte da vida nos martirizamos por coisas que não temos o poder de interferir, de mudar.

Isso é sempre uma culpa a mais que carregamos.

Essas culpas fazem mal.

Essas estragam seus outros tesouros se colocados juntos.

Sem contar que vão para seu armário de troféus sendo apenas ouro de tolo.

Se uma borboleta pode bater asas aqui e com isso criar um furacão do outro lado do mundo, uma culpa acumulada de forma errada pode criar terremotos no seu reino.

Seu caráter foi moldado por erros e acertos.

Isso vai jogando um lado da balança pra cima e outro para baixo.

A forma como você lida com eles, é que vai te dar o equilíbrio.

Sempre fui um fã de coisas pendentes.

Porque sempre que encontrava um beco sem saída, achava que não existia fim da linha que me parasse.

Engano de um espírito jovem que já se foi.

Os ciclos precisam ser finalizados.

As pendências resolvidas.

As culpas divididas e assumidas.

Lições tem que ser aprendidas.

Guerras vencidas ou perdidas.

Ódios destilados.

Rancores compreendidos.

Sofrimentos sentidos.

Lágrimas choradas.

Amores deleitados

Risos deliciados.

Evoluções adquiridas.

Empatias equilibradas.

Talvez esse seja o melhor caminho para atingir o famoso nirvana.

A ciência vai te dar meios de crescer.

A psicologia e psicanálise te dará suporte para se estruturar.

Mesmo a fé te fortalecerá de alguma forma psicologicamente.

Mas se a sua essência não se justificar, tudo isso não passará de muletas temporárias, que só vão te salvar de pequenos tombos.

No alto da minha sacada, dentro da minha fortaleza e de frente para o meu baú do tesouro, eu consigo ver minha essência.

E nas palavras, eu tento fazer dela um caminho para que você encontre a sua.