De volta a cinzenta Limerick, que sorria para mim com seus raros raios solares como uma espécie de bem-vindo de volta.
Todo o caos do mundo era real, e em Limerick não seria diferente.
O País também estava de quarentena, que impossibilitava a população de saídas diárias para rua sem ser algo essencial.
Eu estava bem preparado no meu apartamento para enfrentar essa quarentena.
Na verdade, podia dizer que estava preparado no meu prédio todo.
Ari havia contratado uma empresa para higienizar e desinfectar todo o prédio.
Também abasteceu os 3 apartamentos com comidas e bebidas, que mais parecia uma preparação de bunker de guerra.
O apartamento do terceiro andar, que estava vago, agora estava preenchido por John, a turca do ácido e Lúcifer.
No meu apartamento agora morava Eu, Faith, Maeve e Elliot, além de Filé de peixe e Bacon.
E assim ia ser esses tempos de quarentena.
Não havia previsão de quando o mundo voltaria ao normal.
Se é que ele voltaria ao que conhecíamos como normal.
O pouco tempo que aquelas notícias pelo mundo se espalhavam, já se conseguia ver como afetavam a sociedade.
As pessoas estavam começando aos poucos a ter consciência de como tudo ia mudar.
Nos primeiros dias em casa, estávamos todos consumindo muito dessa crise.
Eu conseguia percebe um clima horrível de ansiedade pela casa.
A televisão da sala só tinha uma finalidade.
Ficava ligada o dia todo no canal de notícias, com aquela rajada de notícias ruins e outras piores.
Demorei uns cinco dias para tomar uma atitude.
Levantei um dia e vi Maeve com um olhar desolado ao ver um gráfico com aumentos de casos.
Peguei uma cerveja na geladeira, respirei fundo, dei um gole e fui em direção a tv.
Desliguei na tomada e abracei a tv no colo, com Maeve me olhando confusa.
Me aproximei da janela e joguei a tv na rua.
Maeve estava em choque com aquela cena.
Agora eu cooperava mais para um cenário apocalíptico dos meus livros.
Ruas vazias, uma televisão destruída no meio da rua, só faltavam os carros abandonados e os jornais voando.
Peguei outra cerveja e dei a ela.
- Aquela merda estava te fazendo mal. – Justificava.
Ela me olhou com os olhos marejados e me deu um longo abraço do que parecia ser um agradecimento e alivio.
Nossa rotina era sossegada.
Elliot era quem gostava de cozinhar para todos.
Maeve no começo estava mais reservada no seu quarto.
Faith era sem sombra de dúvida a que mais precisava se comunicar.
Às vezes eu acordava com ela sentada à beira da minha cama puxando conversa.
O que era uma forma menos impactante de ser acordado, do que lambido por Bacon, que adorava ir para minha cama de manhã.
Faith tinha tanta energia para ser jogada para fora em forma de fala, que ela andava pelo prédio interagindo com os moradores do nosso complexo prisional, como chamávamos.
Quando ela não estava me acordando, perturbando as receitas de Elliot, fofocando com Maeve, ela ia atrás de John e a turca e outras vezes estava com as irmãs holandesas.
Ela com certeza era a mais afetada pela aquela situação de quarentena.
Eu no começo tentei escrever mais.
Porem minha escrita estava contaminada pela aquela negatividade que eu tinha sido mergulhado.
Então parei.
Minha rotina era beber e interagir com os 3 animais que ficavam o dia todo andando por todo o prédio.
Nós tínhamos uma área social atrás do prédio.
Uma espécie de quintal, e eu ficava ali aproveitando um sol sempre com um deles.
Lúcifer era o que mais me acompanhava.
Ficava ali com aquele olhar caído e aquele semblante cansado que ele tinha, sempre próximo o suficiente para sempre estar me babando.
Filé de peixe estava em um caso de amor com minhas vizinhas holandesas.
Ela aparecia ocasionalmente para me dar uma lambida e se esticar no quintal um tempo no sol, depois sumia para lá.
Bacon era preguiçoso.
Descer as escadas para ir ao quintal era uma tortura para ele.
Então quando eu começava a me preparar para descer, ele se enrolava pelas minhas pernas implorando para que eu levasse ele no colo.
Já no quintal, ai sim, ele aproveitava como uma criança com um brinquedo novo.
Quando íamos voltar para o apartamento, era a mesma cena.
Lá ia eu carregar aquele mini porco, que de mini não tinha nada.
Elliot era o que melhor parecia lidar com toda aquela nova fase perturbadora.
Estava sempre com um sorriso.
Passava horas fazendo novas receitas.
Tinha virado seu novo passatempo e ele cozinhava bem.
Sempre tinha alguma atividade para reunir todos e dar uma aliviada no ambiente.
Foi ele o responsável por tirar Maeve daquela escuridão que ela se encontrava nos primeiros dias.
Em compensação, toda essa energia tinha uma explicação.
Elliot estava mais adicto do que nunca em doces.
Passava o dia todo se entupindo de qualquer coisa que levava açúcar.
Um dia eu estava na sala conversando com ele, quando ele decidiu que precisava me mostrar uma receita com cerveja que ele tinha aprendido.
Quando chegamos na bancada da cozinha, eu vi que tinhas 5 carreiras de pó branco, dando a ideia de cocaína.
Mas o pó era visivelmente diferente.
Faith estava na cozinha fazendo um chá, quando viu nossas caras de espanto.
- Montei umas carreiras para Elliot, a taxa de açúcar do dia dele está baixa hoje. - Ela ria apontando para as linhas feitas de açúcar.
Faith tinha um humor ácido sofisticado e esquisito.
Maeve era um caso à parte na casa nos primeiros dias.
Começou a quarentena bem baixo astral.
Estava apavorada consumindo tudo que ela podia de aterrorizante dos noticiários, até o momento que joguei a tv fora.
Aquilo foi um divisor de águas na casa.
Ela começou realmente a se reerguer dali.
Começou a fazer seus exercícios de yoga diários e voltava a sorrir com sua leveza natural.
Eu lidava com aquela quarentena como o anfitrião que tinha que ser forte.
Continuava minha rotina alcoólica, agora um pouco mais potencializada.
Quando Faith sentava para beber comigo até o amanhecer, era como se o mundo tivesse acabado lá fora.
Caia os dois na sala e só íamos acordar no dia seguinte com Bacon e Lúcifer lambendo nossas bocas.
Em vez em quando fazíamos noite de jogatina.
Carteado, jogos de tabuleiro e às vezes até mesmo vídeo games, que era mais a praia de Elliot.
Faith era disparada a mais competitiva.
A noite de carteado se resumia a disputa em duplas no geral, e ela era minha dupla.
Maeve e Elliot, John e a turca e as irmãs holandesas.
A turca e a irmã holandesa mais nova, eram do tipo carne de pescoço também.
Então era como seu eu estivesse nas trincheiras escondido assistindo à Segunda Guerra Mundial.
A diferença é que todas elas pareciam fazer parte do exército alemão.
As noites de pôquer também eram bem tensas.
Sempre fui bom com cartas, principalmente em jogos individuais como pôquer.
Porem ali, eu sempre era um dos primeiros a bater, entregando meus pontos.
As meninas tinham um espírito muito competitivo para mim.
Umas dessas noites eu já estava decidido a abandonar o jogo e deixar que as três se decidissem na mesa, quando foi se montando um cenário inimaginável de um Royal Flush.
Resolvi ver se aquilo se concretizava.
Esse tipo de jogada você jamais nega de tentar, tipo te alimenta como tesão a cada rodada.
Eu começava a aumentar a aposta.
Faith sempre teve uma certeza que ela conseguia me ler.
E ela sabia que eu blefava mesmo com um 5 e um 2 na mão.
Ela só não sabia identificar ao certo quando eu blefava, ela achava que sabia.
E resolveu me seguir no aumento das apostas
John corria da rodada, seguido por Elliot.
A irmã holandesa mais velha pagava qualquer rodada, mesmo sem nada.
Era uma espécie de kamikaze, nunca consegui entender a lógica do jogo dela, o que às vezes era confuso para o meu jogo.
A turca e irmã holandesa mais nova vendo aquela mesa composta comigo e Faith aumentando as apostas, não perderam tempo colocando suas apostas também.
Você podia ver os olhares na mesa como aquela mão seria um troféu.
As três estavam ignorando minha presença na rodada, era uma guerra particular entre elas tão grande que elas não conseguiam olha para o lado.
Eu precisava de uma carta, um rei de copas.
As probabilidades estavam contra mim.
Mas eu não me importava.
A última carta veio para a mesa, naquele movimento em câmera lenta.
Um rei de copas.
Se eu fosse seguir probabilidades na minha vida, eu estava fudido.
Eu começava a rodada, e resolvi não aumentar o pote.
Aquilo foi como se eu tivesse uma mensagem subliminar para que elas fossem all in.
E foi exatamente o que aconteceu.
A mesa toda pagando all in.
As cartas foram sendo mostradas uma a uma.
Eu dei um gole na minha cerveja e montei aquele Royal Flush de copas tão perfeito digno de um agente secreto de respeito.
E houve um silêncio por segundos, como se o tempo se rompesse.
Elas não esperavam.
Elas sequer lembravam que eu estava no jogo e que eu tinha começado a cavar aquele buraco do qual elas caiam agora.
Faith me olhava com uma indignação, do tipo de quem tinha sido enganada covardemente.
- Desculpe meninas, mas vocês que tiveram a brilhante ideia de all in.
Parece que agora teremos que jogar strip pôquer, já que ninguém tem mais o que apostar. – Eu usava do meu deboche habitual.
Aquela noite foi engraçada.
Resolvemos queimar uma carne no quintal um dia.
Estávamos em oito pessoas completamente isoladas há mais de quinze dias no prédio, sem contato com o mundo lá fora.
O sol brilhava, o clima era realmente gostoso de se apreciar.
A minha gata estava esticada na grama, com o cachorro de John e o porco de Elliot.
Eles tinham um tipo de parceria engraçada de ver.
Esse dia foi um alívio mental necessário.
Ficamos lá sentados conversando, comendo e bebendo até a madrugada.
No meio dessa conversa, falando sobre planos, decidimos fazer uma lista de coisas a se fazer quando o mundo voltasse ao normal.
Se tem uma coisa que vai ser uma lição para muitos, é como dar valor a coisas simples como ir na rua comprar pão.
A lista seria um exercício para se fazer aos poucos, mas decidimos escolher o primeiro item ali.
Elliot começou.
- Não sei exatamente onde começar, mas vou fazer um mochilão pelo mundo.
Essa falta de liberdade me mostrou que preciso abrir minha cabeça para o mundo para ontem. – Elliot falava com sua seriedade de sempre.
Maeve seguia nessa base.
- Eu vou fazer o caminho de Santiago de Compostela.
Preciso desse tipo de peregrinação depois de tudo isso.
A turca sorria antes da sua escolha.
- Todo brasileiro que conheço me pergunta sobre os balões da Capadócia, e eu nunca nem tive ideia que esse tipo de turismo era famoso lá.
Então vou andar de balão na Capadócia.
Faith era direta.
- Vou comprar uma moto.
Eu não quero nunca mais viver algo parecido a essa falta de liberdade atual.
E dirigindo minha moto por aí, sei que vai ser minha alimentação diária de liberdade.- Ela falava com seus olhos brilhando.
A irmã holandesa mais nova estava determinada a virar uma profissional do pôquer e fazer a limpa nos cassinos em Las Vegas.
- Nunca mais você vai ter a audácia de colocar mais que um par na mesa comigo Vigário. – Ela me ameaçava gargalhando.
A irmã holandesa mais velha ficou uns segundos refletindo sobre o que faria primeiro.
- Sempre quis ter uma banda de Rock.
Acho que depois dessa fase, eu terei o incentivo necessário para tirar minha guitarra da caixa.
John estava em silêncio, olhando para mim como se precisasse confessar algo.
- Então, quando tudo isso acabar, eu já tenho tudo planejado para esse meu primeiro item.
E esse talvez seja um bom momento para contar sobre.
Eu e a turca vamos nos casar. - John acompanhava as reações.
Faith deu um grito de alegria e pulou abraçando John, que estava completamente constrangido.
Todos foram cumprimentar o casal pela novidade.
Eu peguei outra cerveja e fiz um brinde a eles.
Aquela era uma ótima notícia.
Uma luz naquela escuridão atual.
A turca era querida por todos nós e uma ótima pessoa.
E John merecia alguém que valesse a pena.
Ficamos ali bebendo e se divertindo com aquela notícia.
- Vigário e o seu primeiro item da lista, você não falou – Maeve perguntava.
- Depois do item de John não tem mais como competir.
Mas a minha primeira providência vai ser ir comprar uma pá.
Sempre quis uma pá na minha casa que eu tivesse comprado.
Um rito de maturidade que eu ainda não cumpri.
Eu realmente tinha esse desejo há muitos anos, mas nunca vi necessidade de cumpri-lo.
Agora tinha virado tipo uma lista de coisas a se fazer antes de morrer.
Aproveita e leva no meu casamento para me ajudar a abrir minha cova – John falava gargalhando e levando um soco no braço da turca.
E todos caiam na gargalhada.
Faith subiu no apartamento e voltou com seu notebook.
- Tem mais três pessoas querendo participar da nossa reunião.
Eu autorizei. – Ela falava abrindo o seu notebook e digitando algo.
Ficou todo mundo se olhando confuso com aquela informação.
Até que surge uma voz difícil de não reconhecer.
- Abandonei uma votação de lei muito importante para saber qual seria a novidade - Latini aparecia em uma tela no notebook sorrindo e com uma garrafa de uísque em uma das salas oficiais do Planalto Federal.
Nunca houve limites para Latini.
Em uma das duas telas restantes aparecia Ari deitado em uma rede com uma praia maravilhosa atrás e um drink colorido desses tropicais na mão.
E na outra tela, Rudolph com um charuto e um copo de conhaque em uma espécie de escritório.
- Eu saio daí e aparece novidades?
Façam o favor de me atualizar. – Ari cobrava dos amigos ali reunidos.
O silêncio era rompido por John e sua notícia bombástica.
- Puta que pariu, o que vocês aprendem na faculdade de Direito?
Advogado que casa é tipo traficante que cheira. – Latini não perdia a chance de fazer seus comentários de humor duvidoso.
Ari abria um grande sorriso com a notícia.
- Faço questão de bancar qualquer tipo de excentricidades que vocês queiram para esse casamento.
Tem que ser um dia diferenciado.
Em seguida, Ari chamava por Faith.
- Faith, aproveite que você tem um tempo para pensar, e essa pode ser a data do nosso casamento também – Ele finalizava sorrindo com aquela proposta no ar.
Faith estava completamente desconcertada e vermelha.
Os comentários em apoio a Ari, para complementar, faziam ela nem conseguir falar.
Só sorria sem graça para Ari.
E Ari com seu sorriso cínico na tela se divertia com aquela situação.
E com aquele clima leve e descontraído foi como continuamos nosso dia.
A quarentena é uma luta diária para manter se limpo da negatividade.
Você já começa mergulhado em toda ansiedade e sentimentos negativos possíveis.
Mas você tem que lutar para não entregar os pontos no final do dia.
Nunca é tarde para começar a desistir.
E dessa vez a desistência vai ser a melhor coisa que você pode optar.
Um presente dessa fase difícil.
Desistir da sua antiga vida.
Se renovar e começar algo completamente diferente e novo.
Assim como John, encontrar na escuridão a luz que vai te guiar para fora dali.
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