quarta-feira, 27 de abril de 2022

Recalculando rota

 



Um mês completamente fora dessa dimensão.

 

Na minha pequena casa no meio do nada na Noruega.

 

Faith resolve aparecer junto com Maeve quebrando a regra de nunca incomodar a minha fuga do mundo.

 

Elas eram insuportavelmente convincentes quando achavam necessário.

 

E dessa vez eu agradeci por esse resgate.

 

Toda aquela bagunça emocional gerada depois dos acontecimentos em Florença tinha se ajeitado.

 

Eu estava um cara estranho do meu habitual.

 

Me sentia opaco, apático e sem estímulo até para beber.

 

Pela primeira vez em muitos anos, não tinha nenhum sentimento por ninguém.

 

Nada.

 

Não ficou sequer aquele sentimento de admiração.

 

Também não parecia ser mais depressão.

 

Dos meus demônios eu sou íntimo.

 

Era estranho experimentar esse sentimento ou falta dele.

 

Vigário que sempre sobreviveu de amor, agora estava em greve de fome.

 

Resquícios de uma confiança abalada, de um autoflagelo por deixar situações existirem sem o mínimo sentido ou mesmo o sentimento ridículo de arrependimento de ter se aberto demais poderiam ser parte do início desse problema.

 

Mas nada disso me afetou.

 

E isso é algo a se preocupar no futuro.

 

Não doía.

 

Faith precisa de um minuto comigo para lutar por mim ou me abandonar.

 

Se eu estou me culpando demais, uma crise de “drama queen” como ela gosta de dizer, ela dá as costas e se vai.

 

E não era o caso.

 

Eu estava ali pronto para voltar depois de todo o turbilhão que enfrentei.

 

Maeve olhava incrédula para o número de garrafas fechadas que permaneciam intocadas na minha residência.

 

A minha fuga sempre foi prática demais.

 

Isolamento social e álcool.

 

Dessa vez eu só estava limpando minha mente e corpo.

 

Logo cedo já estava dentro de um avião novamente com Faith agarrada no meu braço e Maeve sentada mais afastada com um ar de preocupação que parecia ser o seu habitual.

 

Maeve além de minha editora, gerenciava minha carreira, então preocupação era sua rotina.

 

Tinha algo a mais no ar, mas podia ser só minha cabeça fora de órbita.

 

Chegando no aeroporto na Irlanda, Maeve informou que já tinha um carro para nós levarmos para casa e que ela nos encontraria mais tarde.

 

Então fui em direção ao meu velho e guerreiro apartamento em Limerick.

 

Eu sabia o quão difícil seria entrar pela porta daquele prédio e vinha me preparando para isso, mas mesmo assim não foi o suficiente.

 

Já no hall de entrada, no meu primeiro passo, a porta se abriu e ali estava a minha vizinha holandesa.

 

Me encarando com um olhar sem brilho e nenhuma expressão no rosto.

 

O silêncio tomou o lugar como uma névoa tóxica por segundos.

 

Mas aquele momento pareceu uma eternidade.

 

Ela então caminhou lentamente em minha direção, ainda em silêncio e com um semblante se modificando a cada passo, com o que parecia ser raiva.

 

Parou na minha frente, olhou dentro dos meus olhos como se invadisse minha alma por alguns segundos.

 

Socou meu peito cinco vezes seguidas, até que desabou em choro e me abraçou.

 

Aquele momento era muito difícil.

 

Mas eu precisava passar por ele.

 

- Você não precisa se culpar. Não leve esse peso para o seu coração - ela resmungava soluçando em choro.

 

E me abraçava mais forte.

 

Foram minutos onde todo o peso do que eu vinha encarando nos últimos tempos se deixou pesar.

 

E depois de muito tempo eu senti algo novamente.

 

A minha auto culpa era cega, e me colocava em uma posição muito pior do que eu deveria estar naquele momento.

 

Mesmo que fosse para apoiá-la ou apoiar os amigos.

 

Tomamos um chá juntos e conversamos bastante depois de tudo aquilo.

 

As coisas estavam voltando ao normal que era possível naquele momento.

 

No meu apartamento, sentei no meu sofá e fui recebido por filé de peixe que não se mostrava rancorosa pelo meu sumiço como de costume.

 

Pelo contrário, estava no auge da sua demonstração de carinho.

 

Ali deitada no meu colo com um olhar de satisfação por aquele momento.

 

Eu devia isso a ela e muito mais.

 

Então Maeve chegou na sala com aquele mesmo ar de preocupação de antes.

 

- Vigário preciso que seu próximo passo seja ir morar um tempo em Nova York. - Ela falava com o mesmo ar tenso, mas de quem estava aconselhando.

 

Eu não questionei mesmo ficando surpreso.

 

- Ok, Central Park talvez seja o melhor lugar para recalcular rota. - Retruquei.

 

Ela me olhava desacreditada com minha aceitação de primeira.

 

- E como você não é nada curioso, não vai querer entender o porquê? - Ela me fuzilava com os olhos.

 

- Não, confio no seu gerenciamento.

 

Minhas palavras pareceram pedras tacadas na direção de Maeve.

 

E com quase um rosnar, ela jogou de volta em mim as pedras imaginárias.

 

- Deveria estar no mínimo ansioso, porque vamos para Nova York atrás do amor da sua vida e um jovem que se parece muito com o pai e precisa de ajuda. - Ela deixou as palavras saírem com um misto de raiva, alivio e tristeza.

 

E eu fiquei ali nocauteado com aquelas palavras.

 

Faith de cabeça baixa como se já soubesse da notícia e não tivesse controle sobre ela.

 

Eu estava voltando para casa disposto a recalcular a rota da minha vida e nesse momento parecia que tinha batido com o carro no poste.

 

Uma vez a muitos anos atrás eu ouvi dela, o amor da minha vida que ela não queria um engenheiro de obra pronta.

 

Que seu quisesse ficar do lado dela e fosse lhe dar suporte precisava entender que a construção ia ser do zero.

 

Com problemas, com insatisfações, com coisas dando errado e que mesmo assim a meta seria o amadurecimento e evolução até que tivéssemos algo sólido e seguro.

 

Eu pareci não entender isso na época.

 

Na primeira dificuldade queria que minha casa já estivesse perfeita.

 

Hoje vejo o quão estúpido era meu pensamento.

 

E com o decorrer da vida fui pulando de uma obra sem estrutura para outra, achando que só uma mobília bonitinha ia ser satisfatório.

 

Ledo engano.

 

Agora via aquele prédio antigo, que ficou abandonado lá no final da rua sem saída desmoronar de vez na minha frente com todas aquelas palavras.

 

E parecia que uma nova e louca fase estava se iniciando na vida de Vigário.

 

La estava eu indo para o aeroporto mais uma vez encarar os problemas da minha vida adulta do qual nesse momento eu nem sequer sabia que os tinha.

 

Cada vez mais parecia se aproximar o dia que vigário entregava os pontos para uma terapia ou para um manicômio.

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