terça-feira, 23 de abril de 2019

A experiência mórmon





Acordei de bom humor, o que era um milagre.

A temperatura batia 16 graus e saia uma espécie de sol lá fora.

Outro tipo de milagre no inverno irlandês.

E sim, eu estava com uma enorme ressaca.

Seriam milagres de mais para um dia, se eu acordasse sem ressaca.

Resolvi dar uma volta as margens do rio da cidade, o famoso rio Shannon.

Sempre que precisava limpar a mente, dava uma volta por lá e assistia as correntezas do rio passando.

Isso era um exercício muito bom de paz mental.

Mas existia a lenda de que o Shannon chamava as pessoas, lenda essa por causa do grande número de suicídio que acontecia ali.

Ao mesmo tempo que o rio me dava paz ,eu sentia como se estivesse olhando para o rio de Hades da mitologia, onde centenas de almas ainda pareciam estar presas ali.

Quando batia minha cota de tranquilidade, tomava um trago do meu uísque de bolso e saia logo dali negando seus chamados.

No caminho de volta para casa, comprei meus frangos fritos e umas cervejas e fui caminhando pela via principal aproveitando aquele clima agradável que fazia na cidade.

No meio do caminho, três mulheres com uma espécie de roupa parecida, pararam na minha frente com belos sorrisos no rosto, perguntando se eu tinha um minuto.

Eu apenas parei e sorri ,porque aparentemente eu tinha uma muralha feita a minha frente pelas três.

- Queríamos falar com você sobre Jesus.
– Uma delas já informando sobre o que se tratava.

- Nada contra, mas ele não faz parte do meu ciclo de intimidade.
-  falei sem nenhuma espécie de ironia e de forma mais educada possível.

Porque realmente não tinha interesse de uma conversa religiosa na rua e com aquela ressaca ainda ali me chutando a cabeça.

No mesmo momento que dei a resposta, duas das mulheres já saíram em busca de outras pessoas na rua e só uma continuou ali na minha frente.

Elas devem ter percebido olhando para mim em segundos o quanto improdutiva seria aquela missão.

A única que ficou ,continuava ali me encarando com um grande sorriso e com um ar de vitória.

Que ao meu ver não fazia sentido nenhum, e isso me deixou um pouco confuso.

- Minha casa já é ali naquela porta amarela, não vou fazer você perder seu tempo
. -  falei achando que aquela era a melhor maneira de uma fuga educada.

Olhando dentro dos meus olhos, ela sorriu novamente com o mesmo ar de vitória de segundos atrás.

- Você não precisa falar comigo sobre jesus ou minha religião, podemos apenas conversar sobre a vida se você não se importar.
– Ela continua com sua estratégia para me desconcertar.

E eu realmente estava desconcertado.

O sorriso, o ar de vitória e o olho no olho, que é algo que me incomoda um pouco.

Eu tenho uma teoria que os olhos são a janela da alma, e algumas pessoas tem esse dom de te invadir.

Não tenho medo de conversar com alguém que fale olhando nos olhos, pelo contrário, é o mínimo que se espera, mas algumas pessoas tem essa habilidade de se aprofundar só pelo olhar.

Ela parecia fazer isso naquele momento, e por isso me sentia desnorteado.

Começamos a falar sobre a vida no geral.

Ela contou que era americana, e que estava na Irlanda como uma espécie de voluntaria da sua igreja.

Ela era mórmon.

E até o momento eu não sabia nada sobre essa religião.

Ficamos ali conversando por um bom tempo.

Ela realmente era agradável e estava ajudando de alguma forma a diminuir nos efeitos da minha ressaca.

Pediu meu telefone e eu informei que não tinha.

Sempre odiei celulares, e depois que cheguei na Irlanda, resolvi driblar Ari e John, e não ter um.

Com a negativa do celular, ela apenas fez uma cara pensativa por alguns segundos enquanto continuava me olhando nos olhos.

- Ok, se você não estiver ocupado, amanhã nesse mesmo horário estarei em frente à entrada da sua casa para conversamos novamente
.

Achei aquilo engraçado e topei sem pensar muito sobre o assunto.

- Só se for novamente, uma conversa sobre a vida, nada de religião.
– Coloquei minhas regras na mesa

E ela apenas concordou com a cabeça.

Me deu um beijo no rosto e com seu sorriso leve, foi embora.

Entrei em casa um pouco confuso com aquilo tudo, mas mesmo assim me joguei na minha melhor terapia.

Frango frito e cerveja na minha cama.

No dia seguinte tudo ocorreu como combinado, e repetimos isso algumas vezes.

Acredito que lá pela quarta vez, convidei ela para ir conversar em um café.

Ela com sua leveza nas palavras habitual me disse que não tomava café, por causa da sua religião.

Mas que ao invés de ir a um café ,aceitaria conversar na minha casa.

Estava começando a chover e estávamos na minha porta, não parecia um plano maléfico arquitetado pela aquela bela mórmon.

Entramos na minha casa e com 2 minutos de conversa, já estávamos nos amassando no sofá.

Ela era linda.
E tinha o poder de me intrigar.

Tinha os cabelos compridos, castanho claro.

Sua pele era um tom claro com algumas manchinhas pelo rosto.

Sempre usava a mesma roupa, um sobretudo preto com uns pequenos detalhes em vermelho.

Era muito discreta e ao mesmo tempo bem apresentada.

Sempre com o seu livro de capa preta, que parecia ser uma espécie de bíblia dos mórmons.

Essas visitas a minha casa se tornaram constante.

E quanto mais intimidade, mas ela começava a se soltar e a falar sobre sua igreja.

No começo estava tudo ótimo.

Eu conseguia cortar o assunto rapidamente.
Mas começou a piorar.

Um fato engraçado, era que todas as vezes que ela ia para minha casa, sempre estava com sua roupa tradicional e seu livro.

Íamos para cama e a primeira coisa que ela fazia era colocar o livro de capa preta ao lado.

Depois de toda a diversão mundana ,eu ficava ali encarando o livro sagrado.

Era um pouco estranho.

Com o tempo ela começou a me pressionar.

Ela não podia ter um relacionamento de fora da igreja, como ela dizia ,não era correto.

E eu não tinha nenhuma intenção de virar um religioso.

Nunca tive nada contra, mas nunca foi a minha praia.

Resolvi sentar com ela e deixar claro que por mais divertido que estivesse aquela relação, eu não iria para a igreja como ela queria.

Ela pareceu chateada mas rapidamente voltou com o sorriso mais tímido dessa vez no rosto e falou que infelizmente ela teria que terminar os nossos encontros.

Eu apenas concordei com a cabeça.

Dei um abraço nela e ela saiu pela porta.

Nessa época, Ari já tinha me obrigado a ter um celular em casa para emergências, e ela tinha esse número.

Acordei um dia com meu celular apitando, várias vezes seguidas.

E quando olhei tinha 27 mensagens pendentes.

Abri uma para ler e era um convite para ir à igreja domingo de manhã.

Número desconhecido.

Abri outra e era algo como “jesus ama você”, também de outro número desconhecido.

E todas as outras mensagens eram de mesmo teor, e todas de números diferentes.

Eu estava sendo atacado pela comunidade mórmon da cidade.

E desde então recebo de 15 a 20 mensagens por dia com convites para ir à igreja.

Foi a forma que a minha linda mórmon achou de se vingar de mim.

Não sou mais parado na rua por eles, parecem que eles me identificam e todos sempre dão um sorrisinho para mim quando passo.

Agora na minha rotina quando acordo ,tenho uma linda ressaca e várias mensagens para deletar.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Um novo voo




Era final do verão, mas ainda restavam alguns dias ensolarados.

Eu estava realmente aproveitando aquele clima quente.

Acordava todos os dias de bom humor.

O que poderia ser considerado um sinal do apocalipse.

Ia andar pela cidade com uma sensação de leveza.

Seguia um mantra nesses belos dias de verão.

Levantava logo cedo, caminhava beirando o rio por algum tempo, ouvindo algo como Tchaikovsky
no fone de ouvido.

Ia almoçar com Ari e John e de lá parávamos em algum pub com área aberta para o sol.

Dali ficávamos até que o sol se fosse embora.

O que no verão da Irlanda significa as 23 mais ou menos.

Dependendo da disposição do dia, às vezes entrávamos para a parte fechada do pub e fechávamos o estabelecimento no meio daquelas pessoas felizes.

Tudo graças aos raios de sol.

Aqueles tempos difíceis de meses atrás pareciam nunca ter existido.

Os restos dos muros que desabaram já não mais doía de ser ver como antes.

Viraram uma espécie de memorial de uma fase bem pesada da vida.

Que sabe se lá como, eu consegui sobreviver.

Até mesmo a tragédia te traz algo.

Raramente você vai ver.

Mas se você conseguir perceber, com certeza é uma lição importante que você terá absorvido.

Nesse momento não tenho um amor.

Nesse momento não tenho nenhuma relação completamente desequilibrada para me deixar distraído.

Nem todo álcool que ando consumindo ou mesmo as insanidades das minhas noites de verão tem conseguido me deixar entorpecido.

Estou sentado na grama de um parque, aproveitando o bem-estar que o calor do sol me traz.

Sem nenhuma neblina nas minhas vistas.

Sem nenhuma escuridão na minha mente.

Sem nenhum aperto no coração.

Momentos como esses são únicos.

Mas são passageiros e terminam em um estalar de dedos.

Mas mesmo que por minutos, é bom sentir um pouco de esperança real.

Vê que até mesmo no mais fundo do fundo do poço, um raio de sol pode aparecer.

Um corvo aterrissa do meu lado, vindo de um voo majestoso.

Aquelas penas negras enormes e brilhosas que com a união da luz do sol parecem produzir faíscas.

Ele simplesmente fica ali do meu lado, dando seus pequenos passos e me encarando com aquele olhar profundo.

Isso parece que me dá um tempo extra de bons pensamentos.

Ele consegue entrar na minha alma.

Pela primeira vez em muito tempo me sinto aliviado e sem sentir as dores que o passado deixou.

A um misticismo sobre o corvo, algo relacionado a mau agouro.

Isso nunca me afetou.

O sentimento que ele me passa é liberdade.

O último instante antes do seu novo voo, ele dá dois passos à frente em minha direção.

Ainda com seu encarar.

Dá duas bicadas no chão, abrindo suas enormes asas e se vai.

Naquele novo voo em direção ao sol.

Aquela conexão louca que tive ali me trouxe uma paz que não conseguiria mensurar.

Eu não sou um otimista.

Nunca fui.

Mas olhar para trás para ver pelo que passou.

Pelo que sobreviveu.

Por todas as porradas que você aguentou.

E por todas as lágrimas que você deixou cair.

Às vezes, isso é algo que traz o conforto que você precisa para continuar.

É isso.

Mais um dia.

Mais porrada para se esquivar.

E com isso,

Mais vitórias para empilhar.

Se quiser desistir, faça.

Só não diga por aí que foi comigo que aprendeu essa atitude.

O que eu procuro e passo para a frente é a procura de uma nova fase na vida.

Com menos dor e menos miséria.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Eu não sei porque.




Se existe uma sensação ruim, com certeza despedida é uma delas.

Seja qual tipo for.

Eu talvez lide melhor com a despedida da morte.

Sem pretensões ou pensamentos religiosos, eu tenho uma certeza que aquele ponto final da vida, foi um final de um ciclo natural.

Talvez o começo de uma nova etapa.

Logico que algumas situações afetam mais esse raciocínio do que outras.

Mas no geral esse é um padrão que normalmente tendo a seguir para esse tipo de despedidas.

A despedida de um relacionamento amoroso que se rompe, por menos importância que tenha, talvez me afete mais.

É algo mais intenso.

Pelo menos no começo.

Depois realmente se torna bem mais fácil de lidar.

Mas a despedida de uma amizade que faz parte do seu dia a dia é a mais difícil.

Eu nunca soube lidar com isso.

Talvez por causa disso, eu tenha me fechado para novas amizades.

Ter alguém ao seu lado que te apoie, te faça sorrir ou mesmo te de aquela chacoalhada necessária, é algo para poucos.

Esse sentimento é uma das poucas coisas que ainda me fazem continuar andando na luz.

Não tem dinheiro no mundo que me dê essa sensação tão prazerosa de uma boa amizade ao lado.

E eu sei que não sou um dos melhores amigos.

Muito menos um dos que demonstra ser tão grato por isso.

Mas realmente é algo que me mantém de pé.

Meus grandes amigos e as suas lutas diárias por mim.

Amizade é algo difícil de explicar.

Alguém que por uma conexão, que as vezes não faz sentido nenhum, estar lá por você sem nenhum motivo.

Isso é algo surreal e ao mesmo tempo grandioso.

Que será cada dia mais raro de encontrar.

Amizade é um diamante achado em um lixão.

Basicamente isso.

No meio de todo o caos, você acha algo desse tipo.

É o prêmio milionário da loteria com o troco da conta de luz.

São momentos raros como esses que vão fazer a vida valer a pena.

Mas a despedida de uma amizade é algo terrível.

Por mais que seu sentimento se mantenha e seja o mais verdadeiro possível.

Perder aquele ponto de referência vai deixar você despedaçado.

É como seu porto seguro estivesse desmoronando.

Eu já passei por isso muitas vezes.

Ver uma amizade verdadeira indo embora.

Pelos caminhos naturais que a vida leva.

Mas nunca é fácil.

Eu me sinto sentado na calçada enquanto vejo minha casa sendo consumida pelo fogo e eu não tenho mais o que fazer.

É realmente dolorido.

E todas essas despedidas foram me fechando para o mundo de alguma forma.

Eu não sei porque.

Não tenho uma explicação que seja relevante.

Mas ver um amigo ir embora tem sido um dos piores sentimentos nessa minha jornada.

Ari e John estão sempre ao meu lado e isso é algo muito precioso.

E eles são heróis.

Pessoas maravilhosas por estarem brigando por mim a cada segundo do dia.

Mesmo comigo tentando os afastar sempre que posso.

Ver Faith se despedir e voltar ao Brasil foi bem pesado.

Foi exatamente esse sentimento que estou tentando descrever mesmo sendo impossível de reproduzir em palavras da forma mais verdadeira.

Quando ela se foi, levou um pedaço de mim.

O fato de estar longe dos outros grandes amigos como Latini, Rudolph e Elliot tem sido bem difícil também.

Mesmo que não faça sentido, já que meu perfil de vida é fugir dos amigos e me trancar no meu quarto.

Ainda assim, ter essas pessoas ao lado faz a diferença.

Sofri bastante nesse meu caminho com despedidas amorosas.

Pé na bunda.

Rompimento por novos caminhos.

Desistência por excesso de dor.

Ou mesmo falta de compatibilidade das almas.

Todas essas despedidas amorosas foram muito intensas.

E me fizeram sofrer como um cão de rua no meio de uma tempestade.

Que é basicamente o modo que me vejo em várias épocas da minha vida.

O velho cão de rua, lá com os olhos marejados, no frio e encharcado, sem perspectiva nenhuma de futuro.

Minhas experiência com despedidas por luto foram pequenas.

Caroline foi a que mais me tirou o chão.

Ela era uma grande amiga que perdi em um acidente.

Era uma pessoa especial com esse dom de transformar a energia das pessoas.

As vezes olho para Faith e sinto essa mesma sensação.

Talvez tenha sido uma forma de Caroline se manter presente, colocando Faith no meu caminho.

A minha despedida de Caroline ainda dói.

Mas é uma dor diferente.

Algo que está ali contínuo, mas que não machuca tanto mais.

Eu realmente assimilei a dor, peguei Caroline e guardei no coração.

E isso evitou que eu sofresse por tanto tempo com isso.

Minha saudade é enorme, mas o fato de eu colocar como obrigação continuar escrevendo por ela, talvez tenha sido o que me protege até hoje dessa dor.

Como eu disse, não passei por muitas despedidas de luto, então talvez ainda venha a escrever sobre isso de uma forma diferente.

Minhas palavras aqui são sempre sobre o sentimento do momento.

Eu pego e coloco no papel.

Não tenho pretensão alguma de criar uma narrativa onde eu direcione as pessoas.

Onde eu diga o que é sagrado ou profano.

São só sentimentos.

Você pode discordar ou não.

Isso é de menos.

Apenas reflita.

Crie sua direção própria.

É só isso que me importa.

Não seja como eu.

Mais um cachorro de rua andando sem caminho pelo mundo.