sábado, 29 de junho de 2019

Visões distorcidas





Quando vim para Irlanda, não vim sabendo do motivo exato.

Vim baseado em uma mentira.

Uma história mirabolante para me comover, criada por Jhon a pedido de Ari.

Pois bem.

Passado a história da falsa doença terminal de Ari a limpo, eu estava na Irlanda.

Logo em seguida, Ari deixou claro do que se tratava aquela viagem e o quanto isso poderia demorar.

Essa nova fase na Irlanda se resumia a uma investigação.

Nos meus tempos como investigador particular junto com Jhon, nós tínhamos uma boa fama.

Éramos realmente bons naquilo.

Cabeças pensantes que faziam a magia de solucionar casos bem diferenciados.

Jhon naquela época ainda usava seu nome profissional de Kozlowski,o que dava mais credibilidade a dupla de investigadores.

Vigário e Kozlowski.

A história era mais séria do que eu imaginava depois dos primeiros relatos, mas é algo para futuros contos.

Por mais que eu tenha sido levado por uma situação que poderia chamar de não habitual para mudar minha vida completamente.

Ainda assim vale a análise.

E hoje estou o dia todo analisando e avaliando fases da minha vida, pessoas e caminhos.

As vezes isso é algo que ajuda a amadurecer.

Comecei com esse dia reflexivo depois de encontrar no meu antigo mp3, uma playlist mais antiga ainda.

Dos tempos que eu ainda era bancário.

Aquela playlist tinha uma carga emocional para mim meio negativa no passado.

Fiquei ali sentado, ouvindo aquelas músicas e cantando todas as letras.

Algo no ar parecia leve.

E foi aí que percebi que aquelas músicas não mais me afetavam.

Tinha superado aquele sentimento de término, quase luto.

Fui bancário por alguns anos.

Nunca fui bom com números, mas sempre soube fazer o necessário para me misturar e sobreviver seja onde for.

Estava ali em um daqueles dias monótonos, aguardando a greve bancaria que iria iniciar na próxima semana.

Greve e banco naquela época, eram palavras sinônimas.

O gerente trazia uma nova funcionaria para apresentar no meu setor.

Ela parecia assustada e com um ar inocente.

Na semana seguinte, greve ativa e ela continuava lá no canto dela com aquele ar assustado.

Era um pouco engraçado assisti lá diariamente da minha cadeira.

Ela não encarava ninguém, apenas fazia seu trabalho robótico e parecia não se impor em nenhuma situação.

Com o tempo aquilo foi me incomodando.

Certo dia, encontrei ela na cantina.

Ela me viu e apenas abaixou a cabeça e se fechou ali no seu cantinho.

Achei graça e vi que era aquele momento de começar a tira lá dessa que parecia ser uma autodefesa.

Fiz alguma piada sem graça e aguardei a sua reação.

Ela sorriu constrangida.

E a partir dali quebrávamos esse gelo aos poucos.

Ela era uma mulher encantadora.

Inteligente acima de tudo e muito centrada.

Mas não estava disposta a jogar o jogo do jeito que o mundo dá as cartas.

Ela tinha essência.

Tinha sonhos e não deixaria ser engolida apenas pela sobrevivência na selva.

Ela sofria muito no trabalho e não reagia.

O banco naquela época era um lugar de antigos funcionários.

Na sua maioria homens, e dos piores tipos.

Ela ouvia um monte de absurdo e nunca reagia.

Esse ambiente de ataques verbais por nada, afetava diretamente na sua essência.

A cada descontrole de um chefe, parecia que abria um corte na alma dela.

Ele se encolhia e ficava realmente afetada por aquilo.

Com o passar do tempo, nós fomos criando laços e com isso começamos um relacionamento.

Eu virei uma espécie de mentor naquele ambiente de trabalho.

Apenas no quesito de como lidar com aquelas pessoas sem perder a empatia.

Essa era a preocupação dela.

Ela dizia que não queria jogar aquele jogo se fosse para virar algo que ela abominava.

Lembro que em um primeiro momento achei aquilo um erro.

Mas com o tempo, ela me convenceu de que estava certa.

Ela tinha uma energia completamente diferente daquele lugar.

Praticava Yoga e era adepta de terapia semanal.

Tinha toda uma preocupação social.

Era doce e inocente de um jeito que eu ainda não conhecia até aquele momento.

Nós sempre conversávamos sobre a vida, sobre decisões e de alguma forma até mesmo futuro.

Ela dizia que não queria ficar no banco por muito mais tempo, porque sentia que aquilo não era ambiente para ela e que não queria ficar como aquelas pessoas.

Avaliando hoje em dia, talvez ela tenha sido uma das coisas que mais me ajudou a realmente dar uma mudada no meu pensar.

O problema foi que isso aconteceu de uma forma meio doida.

Ela começou a se jogar de cabeça naquela selva, como uma hiena sem escrúpulos.

E eu ,como uma velha raposa, comecei a perceber que aquela adrenalina da selva não era mais para mim.

E fui me afastando com toda a experiência que obtive em todo esse tempo de sobrevivência, tentando não ser percebido e nem atacado.

Esses movimentos opostos nos afastaram de um jeito sem volta.

Acredito que ela perdeu interesse em mim quando interpretou que eu não tinha mais vigor para aquela vida selvagem.

Nos terminamos em algum momento, mas continuávamos trabalhando juntos.

O que era um tormento.

Eu assistia a pessoa mais humana que eu havia conhecido até ali, virar algo que já se aproximava ao repugnante.

Ela parecia estar virando o que mais a assombrava.

Aquelas pessoas sem paciência, que atacam qualquer um do qual vislumbram fragilidade.

Em algum momento achei que era coisa da minha cabeça e que não estava lidando bem com o termino.

É mais fácil se você ver a outra pessoa como algo ruim.

Mas não fazia sentido.

Terminamos sem guerras ou grandes feridas.

Mas os corredores já falavam sobre ela, e o quão detestável ela estava se tornando.

Aquilo era assombroso.

Nos seus primeiros dias, ela não conseguia enfrentar ninguém, nem ao menos brigava pelo seus direitos.

Agora era ela quem gritava com as pessoas, quem diminua os novatos e andava pelo setor com um ar de prepotência.

Eu já não tinha mais estômago.

Nem para ela e nem para aquele lugar.

Resolvi abandonar o banco.

Pedi minhas contas e fui atrás de um outro caminho.

Ver ela daquele jeito parecia ser uma derrota que nunca assumi.

Até hoje.

O mundo é realmente muito louco.

Enquanto descubro que aquela playlist não me faz mais mal como naquela época, recebo um e-mail.

Esse e-mail são para leitores da minha coluna que escrevo para um blog alternativo a algum tempo.

Onde crio contos e falo sobre relacionamentos.

Quando começo ler o e-mail ,um sorriso de descrença aparece automático no meu rosto.

Era ela.

Dizendo que não conhecia meus contos antes, e que agora que tinha conhecido, havia se identificado em muitos deles.

E que só estava me mandando aquela mensagem porque achou muito invasivo eu falar sobre ela.

E ali resolvi assumir minha derrota.

Ela tinha virado algo tão arrogante, que mesmo com anos sem ter contato ,ela viria falar comigo como se minha literatura fosse sobre nossa relação.

Não.

Não havia nenhum conto sobre ela.

Eu realmente não escrevia sobre relacionamentos reais.

Muito menos fatos que pudessem invadir minha privacidade.

Foi só uma forma dela aparecer e me dar o troféu da primeira derrota que reconheci na vida.

Pena ela chegar tão atrasada, meu armário de troféus já está lotado.
Mas tudo isso podia ser uma visão distorcida.

Em um cenário que eu estivesse escrevendo esse conto com sentimentos vindos do fígado.

Não seria surpresa.

Sempre fui um acumulado de erros e acertos.

Mesmo com o e-mail, resolvi criar uma segunda visão sobre essa história.

Onde ela saia do trabalho antes de mim.

Simplesmente para defender sua essência.

Ela nunca se entregou a selva, e isso que fez todos atacarem sua imagem daquele jeito.

Eu estava apenas com a visão embaçada pelo excesso de bile que me corroía naquele tempo.

Toda aquele tormento de trabalharmos juntos depois do término, machucou ambos demais.

E cada um reagiu de um jeito.

Ela sofreu e eu me fechei.

Me joguei de cabeça no banco e isso me afastou de vez do que poderia ser a salvação da minha humanidade.

O e-mail de hoje foi apenas um spam.

Esses do tipo “Aumente seu pênis”.

É com essa versão lado B que preferi ficar e acreditar.

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