Quando eu era moleque, minha mãe adorava dizer: “Passarinho que acompanha morcego, acorda de cabeça para baixo”.
Deste então fui esse pássaro
O pássaro que brilhava os olhos assistindo à liberdade marginal do morcego.
Nesse ditado que minha mãe usava para me assustar e me manter em uma gaiola, o morcego era quem de alguma forma estava no mundo.
Era quem podia bater as asas livre de amarras, livre de uma cartilha obrigatória.
O morcego tinha essa imagem distorcida.
Era um egoísta por natureza, simplesmente por fazer suas escolhas baseadas apenas no seu bem-estar.
Era colocado as margens da sociedade, um marginal de carteirinha.
Nesse ditado, eu era o pequeno pássaro.
Frágil e influenciável.
Eu sempre era colocado nesse lugar.
E o mundo era descrito como um lugar perverso e toxico.
Eu não tinha as asas cortadas, mas elas eram estimuladas a atrofiar desde sempre.
Quando um morcego se aproximava, vinha todo esse discurso novamente.
“Você vai acordar de cabeça para baixo…” - Sempre com aquele tom de manipulação emocional.
Acordar de cabeça para baixo era ver minha vida fora dos padrões que as pessoas acham como natural.
Se matar de trabalhar.
Juntar dinheiro.
Viver a vida baseado em princípios religiosos que não eram meus.
Abdicar das próprias escolhas para viver a vida em função de outros.
Sair desse roteiro padrão que conhecemos era o novo pecado capital do momento.
Imagina você, ousar em não querer ter uma família.
Pode jogar esse pecador na fogueira.
Imagina uma mulher optar por não querer ter filhos e viver a vida baseada nessa escolha tão envenenada.
As bruxas de salém ressuscitariam apenas para serem queimadas vivas de novo.
Cenários comuns como casais que vivem de aparência.
Passando por cima de agressões, abusos e desrespeitos, simplesmente porque existe um mandamento não escrito na pedra que manda você aguentar tudo para ter algo que chama de família.
Imagina só você usar seu dinheiro para viajar o mundo, conhecer culturas diferentes ao invés de juntar pobreza em um padrão falido e você nem saber o porquê fez essa escolha.
Mas para ver esse mundo, só saindo da gaiola.
O tempo foi passando e eu fui virando um pássaro maior.
Minhas asas imploravam por voar.
Era da minha natureza.
Mesmo aquele encanto que eu tinha pela liberdade dos morcegos não eram suficientes.
E a vida foi indo, e a cartilha foi sendo seguida.
Minhas asas pareciam que nunca iriam exercer sua função natural.
Às vezes a proteção é a pior prisão.
E la estava eu, preso naquele gaiola por excesso de cuidados.
Mas eu via uma vida la fora, meio mundo de distância e sorria um sorriso triste.
Meus olhos brilhavam, mas agora porque lagrimas desciam.
Não tinha mais os morcegos que pudessem me incentivar a tentar aquela liberdade.
Alguns amores apareciam no decorrer da vida e me traziam algumas ilusões.
Junto, grilhões nas pernas.
Lançava meus assobios ao mundo, aguardando uma resposta ou um convite para mergulhar em um futuro sem amarras.
Eu me encontrava tão sem vida, sem alma, que não podia chamar aquilo de canto.
Um dia, um gato preto parou de frente para minha gaiola.
Despretensiosamente.
Exalando liberdade, era um perfil tão perigoso quando o morcego.
Mas para mim, não existia mais nada a perder.
E com o passar do tempo, aquela amizade foi crescendo.
A liberdade era algo tão natural para o gato preto, que podia ser facilmente confundida como se ele fosse bem blasé.
Mas aquilo era o poder que a liberdade tinha.
Em nossas conversas, todo dia minhas expectativas explodiam mais.
Meu mundo expandia mesmo que na minha cabeça.
O gato achava um absurdo o meu medo do mundo e eu achava emocionante cada aventura que ele me narrava.
Eu estava apaixonado pela aquela sensação de cada lugar novo que o gato me narrava.
Aquela adrenalina realmente me afetava.
Mas o gato sempre foi muito cuidadoso comigo também.
Sabia que para quem sempre foi preso, a liberdade podia ser o fim.
Aos poucos ele me treinava para o mundo, mesmo que apenas com simulações e contos bem narrados.
Se com o morcego eu acordaria de cabeça para baixo, para minha mãe, seguindo o gato preto, eu seria engolido.
E eu cogitei que mesmo se aquele fosse o resultado, talvez valeria a pena arriscar.
O gato preto era encantador, tinha seu charme.
A liberdade é sempre um plus, traz uma energia diferente.
Tinha uma fala segura, um pelo brilhoso, um humor cativante e um miado hipnotizador.
Mas sempre bem honesto nas suas palavras.
Me vendia um mundo que o emocionava ao descrever.
Tive anos nessa amizade.
E por mais ameaçador que pareça a amizade de um gato preto com um pássaro, la estávamos nos sempre nos apoiando, mesmo em mundos diferentes.
Mas o fatídico dia chegaria.
O gato preto resolveu me fazer uma pergunta que ele nunca tinha feito.
- Por que você não vem comigo?
Suas asas são saudáveis e a gaiola sempre esteve aberta.
E foi ali que caiu minha ficha e resolvi arriscar pela primeira vez.
Uma única pergunta, e minha cegueira se curou.
Minha coragem se mostrou e o gato sorriu feliz por fazer parte daquela minha nova fase.
Minha prisão foi estimulada, mas quem se prendeu la fui eu.
Era fácil colocar a culpa no ditado da minha mãe, e me esconder atrás de uma covardia que eu alimentava.
O medo do arriscar.
O medo do viver.
Aquele medo de sentir novas sensações, sentir o sangue correndo nas veias e o ar batendo no rosto.
De cair, se machucar, sentir pela primeira vez uma dor que nunca tinha sentido.
Conhecer um sorriso novo que mexeria músculos nunca usados no meu rosto.
Viver de verdade.
Sem culpar ninguém pelos meus medos.
La estávamos nos dois lado a lado.
E aquela era a companhia mais leal que eu teria naquela nova vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário